quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

V Congresso Nacional do MC: Frei Carlos Josaphat OP



V Congresso Nacional do MC
“Necessário vos é nascer de novo. O Espírito sopra onde quer. A ação do Espírito Santo no Brasil e no mundo. MC: Sopro do Espírito”.

Tema: Espírito Santo em tempos de Pentecostalismos  os desafios  do discurso Teológico
                                                                       Frei Carlos Josaphat OP

            A espiritualidade e a teologia são hoje convidadas a acolher um novo Pentecostes, abraçando com entusiasmo mas igualmente com muito discernimento a imensa riqueza dos dons do Espírito na diferentes formas de movimentos pentecostais e carismáticos. Esses movimentos mereceram uma menção prioritária do Cardeal J. Ratzinger, hoje nosso papa Bento XVI.[1]
            Poderíamos dizer que há na Igreja e no mundo como que uma saudade e uma grande sede do Espírito Santo. Sem dúvida jamais a Igreja cessou de cultuar, de invocar e exaltar o Espírito que é Senhor e Fonte de Vida, como proclama o Símbolo Niceno-Constantinopolitano. “Senhor e  Fonte de vida” é o título de uma bela e profunda encíclica de João Paulo II.[2]

            Itinerário e critério teológicos.

            No empenho de ativar e incentivar a acolhida do novo Pentecostes, cujo  ponto forte e luminoso resplandeceu no Concílio Vaticano II (1962-1965), nossa reflexão teológica fará bem em realçar a grandeza desse Mistério de Amor e de Vida que é a Pessoa divina e o Dom salvador e santificador, o Espírito Santo, Deus com o Pai e o Filho na Comunhão trinitária.         Buscaremos em seguida contemplar e esclarecer os dons que nos vêm desse Dom Divino e Pessoal, e  a ele nos hão de encaminhar. É o   que nos permitirá de estabelecer os critérios para bem distinguir o valor e a hierarquia dos carismas, bem como dos fenômenos pentecostais, que acompanham por vezes os movimentos que têm surgido na Igreja e no mundo; sem no entanto nos deter em sua apreciação pormenorizada.Nossa tarefa será puramente doutrinal, apoiada na leitura e na compreensão intelectual e espiritual da mensagem da Fé.

            No centro de nossa Fé, o Espírito de Vida e de Amor.    

            Bem no coração do Símbolo em que a Igreja elaborou a profissão de fé que recebemos dos Apóstolos, contemplamos e proclamamos o Mistério de Vida e de Amor que é o Espírito Santo. Toda a nossa vida é consagrada à Santíssima trindade, para que seja um sacrifício  de adoração e de ação de graças, de tendência constante ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. Ele é o Dom de perfeita intimidade e comunhão em Deus e para nós. No Espírito e pelo Espírito, o Pai e o Filho vêm e se dão a nós. No Espírito e pelo Espírito, nós nos damos ao Pai e ao Filho, entramos na Comunhão Trinitária. E somos impelidos à solidariedade fraterna universal.
            Cristo, o Verbo, é a Imagem perfeita de Deus. O Espírito é o Amor e o Dom que é como o dinamismo desse Amor. Daí, o caráter objetivo da missão de Cristo, Verbo Encarnado. Ele se dá como  exemplo e o  mestre que ensina por palavras, por obras , pelo dom de sua vida. O Espírito é o Mestre interior, que torna presentes e ativos no íntimo de nós  os ensinos,  os gestos, a figura, a morte a ressurreição  de Jesus. Pelo Espírito, Cristo está em nós e nós estamos em Cristo.
            Na terceira parte ou terceiro artigo abrangente do Símbolo dos Apóstolos, contemplamos o Espírito como fonte de vida, de unidade, de santidade para a Igreja;pois esta  é especialmente atribuída ao Espírito, como a criação aparece como a obra do Pai e a redenção como realizada pelo Filho encarnado. Pela Igreja,  “sacramento da reconciliação universal”, o Espírito Santo será para toda a humanidade a fonte da graça e da glória, do perdão dos pecados, da comunhão na santidade, da ressurreição e da vida eterna.
            Como fonte e objeto de nossa contemplação perdura sempre no coração dos fiéis e de toda a Igreja, o Deus Espírito Santo, o Amor em Deus e vindo de Deus sobre o mundo, realizando a nova criação à semelhança e na dependência da Comunhão trinitária. No seu grande empenho  de se definir hoje em toda a sua verdade, fora de qualquer controvérsia, e como comunidade de salvação e de paz para a humanidade, a Igreja reunida no Concílio Vaticano II, elaborou com todo cuidado e carinho a Constituição Lumen gentium (21.11.1964), cujo primeiro capítulo põe em relevo, antes de tudo,  o “mistério da Igreja”. Nele, logo de entrada,se destaca com muita complacência, como primeiro princípio explicativo: “a Igreja, povo congregado na unidade do Pai e do filho e do Espírito Santo” (No.4).
            Com uma nota de entusiasmo e de fervor se descreve e elucida o que é o Espírito para a Igreja: fonte de vida, de graça, de perdão, de oração,  de santidade e de ressurreição. Como no verdadeiro templo da Nova Aliança, o Espírito habita a comunidade e os corações  dos fiéis. (Ibidem).   
            Assim, o Espírito Santo está no centro, é o Centro da alma e da Igreja. Com sua energia criadora e santificadora,  Ele aí está sempre infundindo a verdade, a liberdade, o amor, a comunhão e o dom de si, afirmando-se qual força renovadora dos corações, das consciências,da sociedade  e da história.
             “Creio no Espírito Santo”. O “crer” de nossa profissão de fé é a proclamação de que o Espírito existe verdadeiramente, mais ainda: que nos consagramos com todo o nosso ser a este Amor se difundindo nos corações dos homens e das mulheres, acolhendo-o com toda a nossa alma e todas as nossas forças, como a fonte da paz, da alegria, da reconciliação com Deus e com toda a humanidade. Ele é o Dom  da santidade evangélica, que  desperta no mundo  o sentido da justiça e da solidariedade.
            “Creio no Espírito Santo”. Assim, fazemos nosso todo o plano de Deus. Tudo o que o Pai realizou e realiza na criação, tudo quanto o Filho viveu, sofreu, projetou e empreendeu entrando em nossa história, - pelo dom e aceitação do Espírito, - se interioriza em nós, em nossas pessoas e em nossas comunidades. É o Espírito de Deus em nosso espírito, o Coração de Deus em nosso coração. É o que se condensa no belo ensinamento de   Rm  8, 9 – 11; 8, 16.
            Na revelação e na acolhida do Espírito  se desdobra o dom  descendente e ascendente do Amor. Temos a felicidade de crer no Amor Universal. Ele vem a nós e nós vamos a Ele, em um movimento circular, que constitui  a mensagem da revelação, a trama da história da salvação condensada no Símbolo dos Apóstolos.Assim se resume a Bíblia, do Gênese ao Apocalipse. É um movimento circular, uma parábola, que parte da comunhão do Pai, do Filho e do Espírito de Amor, e a essa comunhão  nos conduz.
            É o plano divino  evocado com insistência muito afetuosa nos últimos Discursos joaninos de Jesus. Aí se empregam verbos de movimento: “se alguém guarda meu mandamento de amor, o Pai e Eu viremos a ele” - para exprimir o dinamismo da Vida, da Verdade, do Amor que está em Deus, que é Deus e que se dá a nós.
            Oramos, empenhamo-nos em crescer na fé e santidade,  para entrar na intimidade e na energia transformadora dessa divina circulação do Amor. O dom do Amor que  é o Espírito, “difundido em nossos corações” (Rm 5,5), e o dom que fazemos de nós mesmos no Espírito e pelo Espírito, eis o que nos realiza como criaturas, imagens, filhas e filhos de Deus. É a nossa vocação divina e humana: amar e ser amados. Anima-nos a certeza de  que  “fomos amados primeiro”, por um Amor eterno e “sem arrependimento”. Esse Amor é o Espírito de Deus em nós.
            A teologia começa por evocar a realidade desse Mistério. Seu critério primordial será simples e exigente:Toda experiência de dons e carismas há de conduzir a esse Mistério do puro e infinito Amor. O que não aponta e tende para ele se distancia da Verdade divina.

            Revelação progressiva do Espírito no centro da História da Salvação.

            Convém começar  relançando um olhar afetuoso sobre o Livro que o próprio Espírito nos dá como a história de Deus e a nossa história, como realização do projeto amoroso de Deus. Lida em profundidade, a Bíblia é a revelação progressiva do Amor de Deus, do Espírito de Amor. Ela é a educação do amor, no amor, pelo amor. O maior  empenho há de ser portanto  ler a Bíblia no Espírito de Amor que a inspirou e que ilumina e aquece a leitura, para que seja entendida do jeito e no sentido em que foi escrita.
            O que se chama o “Antigo Testamento” é de fato o 1º volume de um só Testamento. Apreendido em sua totalidade e à luz da revelação definitiva, desde a primeira página, nele reconhecemos a revelação do Espírito que vai se fazendo em um processo,por vezes difícil, mas sempre maravilhoso e paciente. O Espírito assume os acontecimentos, intervém nas pessoas, delas se apodera para conduzir os fiéis, o povo, a história para Deus.
            Há sem dúvida um desenrolar de fatos e feitos, de palavras, de gestos, de momentos de serenidade ou de violências, de conchavos e de guerras.Pela Aliança,  Deus se prende à  humanidade tal qual ela é. E  entra na história do jeito que ela vem e  vai se desdobrando. Esse realismo humano, terrivelmente humano, da Bíblia, pode velar  a presença do Espírito, ocasionando o desconhecimento das etapas de   preparação de sua  revelação discreta e progressiva. No entanto a compreensão dessa lenta e sábia pedagogia tem o seu lugar indispensável para que se chegue realmente à plena aceitação do dom maravilhoso do Espírito, Amor pessoal de Deus comunicando-se e revelando-se no Novo Testamento. “Veio a plenitude dos tempos” (Gl 4,4: Rm 5,5). É o  Pléroma do Espírito, dado em abundância e levando tudo à perfeição.
            Apontemos as grandes balizas dessa caminhada ou dessa ascensão rumo ao encontro com o Espírito,  sempre secretamente conduzida pelo mesmo Espírito:

            • Espírito criador, fonte de vida, animador do ser humano.

            No começo e na base de tudo, contemplamos o Vento leve e fecundo, se fazendo reconhecer de modo definitivo como  Espírito criador das coisas: qual águia amorosa esvoaçando sobre as águas, abraçando e fertilizando as coisas (Gn 1,2). Nas línguas bíblicas, “espírito” designa o sopro em toda a sua abrangência semântica: o ar, o vento, a brisa, a respiração, o hálito.
            Daí, um segundo sentido importante, fundamental em toda a Escritura: o Espírito é o Sopro vital, vindo de Deus; alguns textos dizem: das narinas ou da boca de Deus, para, juntamente com a Palavra, animar o ser humano, dele fazendo um vivente (Gn 2, 7).
            Há uma conexão profunda e constante da “Palavra e do Sopro” divinos.   Pela íntima convergência  da palavra e do sopro, se descrevem as relações de Deus com as criaturas, agindo nas profundezas delas como princípio do ser, prenunciando a revelação da Palavra e do Espírito, como Pessoas divinas no Novo Testamento. Bela síntese dessa mensagem constante vem a ser o refrão do salmista:

                        Por sua Palavra surgiram os céus
                        Do Sopro de sua boa brotaram todas as estrelas
                                   Salmo 33 (32), 6.
            • Espírito: irrupção  impetuosa e surpreendente de Deus.

            Para os oprimidos, os deprimidos, no decorrer da história desponta o Espírito de coragem e de luta. Anima os chefes, os líderes, os guerrilheiros, levando-os a salvar o povo, tornando-os guias e  juizes dos fracos e abatidos. Essa forma de manifestação do Espírito é muito forte, e até espetacular na história dos Juízes no livro do mesmo nome. Israel vive então uma aventura meio parecida com as vicissitudes de movimentos como o  MST. Um povo sem terra ocupa a terra e tem que lutar para nela sobreviver. Na Bíblia, a terra se torna a base e a garantia da Aliança. 
            Os chamados Juizes são líderes guerreiros ou guerrilheiros, reconhecidos como mandatários de Deus, porque defendem o povo e mantêm as condições da Aliança. Mas estão longe de ser modelos de santidade. São tocados ou assumidos pelo Espírito de maneira  pontual, episódica. É o que acontece com Otoniel (Jz 3,10), Gedeão (Jz 6,34), Jefté (Jz 11, 29). O voto deste último e seu cumprimento estão longe de ser ética e espiritualmente recomendáveis (Jz 11, 29ss). O mais típico e surpreendente é Sansão.  O Juiz  ou o líder do povo se torna um guerrilheiro, faz proezas, em favor do povo, mas seu comportamento ou suas idéias, de parceria com as de Dalila, não têm nada da santidade e da perfeição que Deus comunicará um dia na plenitude dos tempos, graças ao dom do Amor.

            • Espírito do entusiasmo profético e o Espírito que falou e agiu pelos Profetas.

            Distinguem-se aqui duas etapas ou duas modalidades de um fenômeno, que aparenta o êxtase ou o transe. O primeiro que chamaríamos de “entusiasmo profético”, sob a ação do “Espírito do Senhor” (1 Sm 10, 6, 10-12): é um estado de exaltação. atribuído à ação do Espírito divino. O segundo, o “Espírito de profecia”,  não apenas produz um entusiasmo e leva a ações extraordinárias, mas manifesta os desígnios de Deus e transforma aquele que é iluminado e guiado pelo Espírito, constituindo-o um  orientador do povo e da história, levando-o a  falar e escrever sob inspiração divina. É o Espírito de santidade, de justiça, de bondade, revelando-se e agindo no íntimo do profeta, dele fazendo uma testemunha  fiel da Palavra de Deus. É o sentido verdadeiro e profundo da profecia como dom do Espírito no Antigo e no Novo Testamento, e que perdura na Igreja. Essa diferença do fenômeno extático, entusiasta e da profecia ; e um dado importante para nossa reflexão teológica.
            Poderíamos destacar um texto de síntese, mostrando um momento de  transição da pedagogia divina, conduzindo e apresentando a figura maravilhosa do profeta Elias. Ele aparece ainda como um profeta sobre o qual o Espírito cai de improviso e o transporta de maneira imprevisível (cf 1 R 18,12: 2 R 2, 16). Mas a ele Deus anuncia que seu Espírito não está no terremoto ou no tufão mas na brisa suave (1 R 19, 11-12).   
            Essa transição pedagógica se manifesta  simultaneamente no que toca aos chefes ou líderes carismáticos, do tipo de Sansão, e no que se refere aos profetas entusiásticos. Os primeiros cedem o lugar aos reis, que o Espírito de Deus vem iluminar e guiar, o que resplandece sobretudo na figura de Davi; e os segundos, os grupos carismáticos de profetas, vão sendo relegados, enquanto avultam os profetas fielmente dóceis ao Espírito. que terão um lugar de relevo na história da salvação, como Isaías, Jeremias, Ezequiel.

            • Espírito de justiça e santidade.

            Já a partir de Gn 6, 3, aponta-se a incompatibilidade do Espírito e da corrupção. É um dado ético, verdadeiro  fio condutor da história da salvação. Deus vem  por sua Palavra e pela força de seu Espírito, mas  encontra o obstáculo da corrupção, da violência, da opressão, da injustiça, do pecado, do desamor.
            Alguns textos mostram a oposição radical entre o Espírito de Deus e o pecado, que habita o coração, a cidade, a nação, o mundo. Assim, o oráculo do capitulo 1º de Isaías explode como um relâmpago de protesto contra a corrupção das pessoas e do povo.Essa mensagem de santidade e justiça prepara os caminhos da misericórdia. Que se leia a mensagem de esperança transmitida em  Is 61, citado com ênfase no N. T. (Cf. Lc 4, 16-21):

                        O Espírito do senhor repousa sobre mim,
                        Ele me ungiu e enviou
                        Anunciar aos pobres a boa nova
                        Proclamar aos cativos a liberdade.

            Uma segunda série de textos vai mais longe: visa a acender a esperança do perdão, da remissão dos pecados, sob as imagens mais fortes de uma purificação, de uma renovação profunda. Os símbolos da água e do fogo são utilizados para nos mostrar a totalidade e a radicalidade dessa purificação.

                        Derramarei sobre vós água pura
                        E sereis purificados.
                        Dar-vos-ei um coração novo
                        Destilarei dentro de vós
                        Um espírito novo
                         (Ex 36, 26s; a comparar com Jr 31, 31s)

            O Espírito se define assim pelo primeiro de seus efeitos em nós: a  Remissão dos pecados. É muito significativa aproximação que se faz no credo: “Creio no Espírito  Santo, na santa Igreja católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados”.
            O Espírito é o princípio da Igreja, sendo a fonte da comunhão dos santos e da remissão dos   pecados. Porque ele é o Amor.  Dele vem a comunhão, o laço do amor. E dele promana o perdão, a remissão dos pecados, que são diluídos, lavados pelo amor ou fundidos no fogo do amor.
            Para a compreensão da revelação em sua perfeição evangélica é de importância primordial essa visão dos pecados e da sua remissão pelo Amor, como é descrita de modo maravilhoso em Ez  36, 26-27. Hoje, como em toda a história do povo de Deus, a verdadeira fé  há se afirmar qual  triunfo sobre a falta de sentido do pecado e sobre a culpabilidade, o sentimento distorcido e exagerado da  culpa.

            • Espírito de sabedoria  e suavidade.

            No processo pedagógico da Escritura, verifica-se o encontro e a identificação dos grandes dons divinos: a sabedoria,  a Palavra, a Lei, e o Espírito. Esses são os grandes dons da Aliança e os caminhos que conduzem ao encontro com Deus, à verdadeira felicidade de cada um e de todo o povo.Em sua realização mais alta e plena, esses dons divinos são exaltados juntos e como que identificados uns com os outros:  A Sabedoria se identifica com o Espírito. O Espírito, enviado por Deus, será uma fonte de sabedoria, de ciência, de discernimento no culto de Deus, na prática da justiça. Tal é a mensagem e a promessa dos profetas para os tempos messiânicos, sintetizada em Is 11, sempre meditada pelo judaísmo e pelo cristianismo.



           
            • Espírito de vida e de ressurreição.

            Em estilo apocalíptico, o tema é desenvolvido pelo profeta Ezequiel (Ez 37, a comparar com Ez 36, 26-27). Ele é  retomado por Daniel que lhe acentua ainda mais o caráter apocalíptico (cf Dn 12), tornando-se um e outro referências para o Apocalipse cristão, seja nos Discursos finais de Jesus nos evangelhos sinópticos seja no último livro da Escritura atribuído a João.

            A revelação perfeita no dom evangélico do Espírito.

            A plenitude evangélica se define como  a Nova Aliança, mais ainda a Nova  Criação e a Nova Humanidade que nascem de Pentecostes. A “Nova criatura” que vem do Espírito, permanece no Espírito, vive do Espírito e no Espírito. Está aí a mensagem pregada pelos Apóstolos e sintetizada de maneira doutrinal e calorosa pela Carta aos Romanos (especialmente, no c. 8).
            No conjunto dos Evangelhos, a vida de Jesus aparece como a revelação progressiva que nos leva a confiar-nos ao Espírito Santo. O desenrolar dessa pedagogia  parte da noção geral do Espírito de Deus, inaugurada no Antigo Testamento, chegando  até à plena revelação do Espírito em sua relação com o Pai e o Filho: o Espírito que nos conduz ao Pai pelo Filho. Ele  nos introduz na verdade total, fazendo-nos penetrar a verdade por dentro.

            • O Espírito é primeiramente  manifestado em relação com a vinda de Jesus.

            Assim, quando a Igreja apostólica, já plenamente iluminada pela fé, se volta a refletir sobre as origens de Cristo, encontra esta resposta: “Jesus foi concebido pelo poder do Espírito Santo” (Mt  1, 18 e 20; Lc 1, 35). E a  ação do Espírito  se mostra com certa ênfase  em todas as personagens ligadas ao nascimento de Jesus; de tal forma que esse nascimento aparece como o ponto de chegada do Antigo Testamento e o começo da plena originalidade divina da Nova Aliança, em que predominam a presença e a ação do Espírito.

            •O Espírito e o advento do Reino de Deus.

            O Evangelho de Lucas realça muito especialmente a presença e a ação constantes do Espírito na vida de Jesus. Em Lc 4, 1, 14, 18, se mostra o Espírito Santo no início da atividade salvadora do Ungido de Deus. E o conjunto dos evangelistas salienta  a ação especial do Espírito nos grandes momentos da vida de Jesus (batismo, transfiguração, momentos de oração). E o Espírito é prometido, ele está como no horizonte, predito e garantido como a força divina que levará a pregação da Igreja ao seu pleno êxito (Mt 10, 20: Lc 12, 2). É significativa a formulação da promessa no final de Lucas que é como a transição para o seu outro livro, os Atos dos Apóstolos:
“Eu vos mandarei o que o meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na Cidade até que sejais revestidos da Força do alto” (Lc 24, 49).
 
            • O Espírito  no Evangelho de João.

            O Espírito, o dom do Espírito e a docilidade ao Espírito, realizam a  glorificação de Cristo em sua humanidade e em toda a humanidade. Na primeira parte do IV Evangelho, em que Cristo, o Filho fala ao mundo, encontram-se indicações  dessa plena realização dos desígnios do Pai: Jo 1, 33: 3,5-8. Mas sobretudo em Jo 7, 37-39: Torrentes de água viva jorrarão do Cristo e dos seus discípulos; tal é a    promessa. E o Evangelista ajunta: “Pois ainda não havia o Espírito, porque Jesus não tinha sido ainda glorificado”; isto é,  o dom de Pentecostes, ainda não se havia realizado.
            Na segunda parte do IV Evangelho, Jesus está com “os seus”  e fala confidencialmente com eles (Jo 13-17). Aí, a promessa e a doutrina do Espírito estão no centro da mensagem. Os grandes textos joaninos iluminarão a vida da Igreja, os debates e os ensinos dogmáticos dos grandes concílios, desde o Concílio de Nicéia em 325. Eles serão a fonte da oração, da meditação e da contemplação dos mestres espirituais e dos místicos em toda a história da Igreja.

            · O “Quinto Evangelho”, o Evangelho do Espírito, os Atos dos Apóstolos.

            O primeiro texto de base vem a ser At 1, 2-8. É o resumo da promessa que sintetiza os evangelhos. A narração  que funda e esclarece todo o “Evangelho do Espírito” se encontra no capítulo 2º dos Atos.  Aí se descreve  o dom de Pentecostes coroando a obra de Cristo e inaugurando a marcha da Igreja, cujo modelo de perfeita docilidade ao Espírito é descrito com visível complacência. 
            A implantação e a difusão da igreja, a primeira evangelização exemplar para todos os tempos, se fazem a partir sempre de pessoas e comunidades repletas do Espírito Santo, irradiando graça, no sentido humano e divino, fazendo confiança ao outro, ao destinatário da boa nova e merecendo sua estima e simpatia.
            O recém-convertido vira apóstolo, na  medida da plenitude do Espírito que recebe e da aprovação da comunidade que passa a acolher, sem consideração de antigüidade ou de qualquer outro critério. A Igreja é uma comunidade ou uma rede de comunidades, sua vida é deveras a comunhão, a participação e a partilha. A Igreja saiu assim das mãos de Cristo e do sopro de Pentecostes.
            Como Jesus nos  Evangelhos, assim o Espírito Santo é o protagonista, o primeiro ator na narração dos Atos dos Apóstolos. Há um prólogo: Jesus não é mais visível. Espera-se que o Espírito assuma a orientação dos agentes e dos acontecimentos. É o capítulo 1º. No Capítulo 2º, no dia de Pentecostes (no coroamento da Semana das semanas, ou no termo das sete semanas), o Espírito vem. Tudo começa. Ele vai constituir, animar e guiar a comunidade em sua missão evangelizadora.

            Imagens, símbolos, eventos.

            Revelando-nos Deus e as coisas de Deus, sem revelar seu próprio Rosto, o Espírito se manifesta em uma multiplicidade de sinais que havemos de discernir com seu próprio auxílio interior. Imagens, símbolos, eventos, efeitos produzidos no mundo e no ser humano constituem uma primeira rede de indicadores que apontam para a realidade misteriosa e para os atributos do Espírito. Ele permanece inacessível, fugindo a qualquer representação que falasse dele de maneira exclusiva ou mediante traços  plenamente distintivos.
            Mas Ele mesmo nos convida e conduz a assumir todos esses sinais, a transpor seus limites, a apoiar-nos  em cada um e no conjunto de todos eles para chegarmos a uma percepção fina e amorosa do Que é e de Quem é o Espírito, vislumbrando com segurança a Realidade, o Mistério, a Pessoa divina do Espírito.
            As figuras ou as imagens que nas teofanias bíblicas encaminham-nos ao conhecimento do Espírito visam sugerir o íntimo de Deus, o que há ou é  mais próprio de Deus, em seu ser, em seu agir soberano, suave e eficaz. Assumem-se formas ou fontes de energias, para ajudar-nos a fazer-nos uma idéia de Deus enquanto Princípio primeiro de energia, de vida e de ação profunda. Aí descobrimos um desígnio: mostrar a  universalidade, a perfeição, a intimidade no ser, na presença e na ação do Espírito.       
            Na história, destacamos o conjunto das ações e dos acontecimentos cujo tecido constitui a revelação  e o dom do Espírito. Tudo é visto e descrito do modo  mais profundo, como ações que estabelecem relações de Deus conosco; e até como uma comunhão da vida, do conhecimento e do amor realizando-se no próprio Deus.
            Os símbolos são tomados aos elementos mais gerais,  mais envolventes e dinâmicos: o ar, a água, o fogo. A eles se acrescenta o óleo, a unção e outros, para designar a doçura e a profundidade da ação do Espírito. São representações e símbolos que sugerem a intimidade, a força, a eficácia, o caráter renovador da presença de Deus. Essa linguagem simbólica tem um ritmo progressivo. Ela revela sentidos cada vez mais profundos, em respostas às aspirações e situações do Povo de Deus. A liturgia mais antiga e sempre atraente nos convida a saborear umas amostras  dos símbolos da água, do fogo, da refeição, da noite, da marcha,   na celebração da vigília pascal.
            Consideremos esses símbolos e alguns textos bíblicos, colocando  sua mensagem em relação com nossa vida dentro do mundo de hoje, tão atento às experiências dos símbolos, e muito propenso ao uso e abuso do imaginário e da afetividade.
            Eis o símbolo primordial do Espírito (etimologicamente ligado ao seu nome): o ar, o ar em movimento e princípio de movimento, vento, tufão, brisa; o ar, fonte de vida, sopro,  respiração. O sopro insinua a fonte de onde vêm a vida e a convivência. O ar circula renovando; o cosmo, a vida, a mente.
            Assim, a primeira imagem que faz corpo com o nome mesmo de “Espírito” – nas várias línguas da Bíblia e da  tradição cristã – é o “Sopro”:  o “Vento” no universo ou o “Sopro da vida”, sopro que faz viver, que faz o vivente, sopro que comunica a vida. No limiar da Bíblia, o primeiro homem recebe de Deus o “Sopro” (“Espírito”) que o faz viver, tornando uma “criatura vivente” (cf. Gn 2, 7). E, na aurora da Nova Aliança,  Cristo ressuscitado, para fazer surgir a nova criação, a nova humanidade, sopra sobre a sua comunidade dizendo: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,  22).
            Aqui, o gesto e a imagem se irmanam à palavra, de modo que o Espírito – Sopro é dado e revelado. O Espírito é fonte de vida, de vida no íntimo do ser humano que participa da vida íntima de Deus.
            Algo de semelhante se passa em Pentecostes (At  2, 1 - 4), quando o Espírito vem do alto, sob a forma e a imagem de Vento impetuoso, de um fogo cujas labaredas são línguas brandas e luminosas, envolvendo a todos juntos e pousando suavemente sobre cada um em particular.
            Essa teofania, essa manifestação divina do Espírito, recorrendo a imagens  comuns e tradicionais, põe em relevo a força poderosa de Deus (vento impetuoso), a ação profunda, íntima, transformadora (línguas de fogo), criando novos seres humanos que passam a comunicar e a transmitir a Palavra da vida. As chamas Insinuam uma ação mais forte do que a da água: daí o contraste do  batismo de água e do batismo  de fogo em  At 1, 8. Com efeito,  na Bíblia, especialmente nos Profetas (por exemplo, Ez 36, 25 – 27), a água é o outro elemento associado ao fogo para simbolizar o Espírito como fonte de purificação e como fecundidade, como princípio de vida. No Novo Testamento a promessa desse batismo – na água e no fogo - se mostra realizada no dom do Espírito que é “derramado em nossos corações”. (Cf. Rm 5,5).
            Merece atenção o fato de que os abalos, os tremores de terra, acompanhamentos clássicos das teofanias; têm aparições discretas nas cenas de Pentecostes. Visam apenas exprimir a novidade e a originalidade da intervenção divina, a ruptura da Antiga e o começo  da Nova Aliança.      
            Merecem ainda relevo o óleo, a unção, indicando ação suave e profunda, como se diz em  1 Jo 2,20,27: 2 Cor, 1,21
            Outro símbolo discreto, mas que teve a maior fortuna na pintura é  a pomba. Uma ave  tem o privilégio de dar uma certa figuração assinalando a presença do Espírito. Aqui está alguém em quem permanece o Espírito de Deus: Jo, 1,32-34. Com a luz e a nuvem, a pomba é a sinalização do bem amado no Batismo de Cristo no Jordão (Mt 3,16 e paralelos).
            Há hoje um grande interesse e uma modernização dos símbolos. É uma das marcas da Nova Era. Ela se caracteriza pela  exaltação e utilização de energias nos diferentes elementos. Daí, o risco de ambigüidade: apego aos valores psicológicos e sugestivos dessas energias, com o esquecimento ou o anonimato de Deus, e mais ainda de seu Espírito de Amor.
            Nossa atitude cristã será: atualizar os símbolos bíblicos dentro da  visão moderna do cosmos, em que emergem ou se presumem energias, ondas, programas inscritos na realidade, e que conduzem o universo das coisas, da vida, do espírito. Os símbolos podem  servir de base em nossa  marcha para o Espírito criador e santificador. Mas, não se há de  parar neles.  Devem guardar a transparência. Se não, acabam resvalando na superstição ou na  idolatria.
                       
            Nomes e propriedades do Espírito.

            Tão ou  mais importante será assinalar e compreender os nomes com que se designa o Espírito Santo. Esses nomes são propriedades ou atributos de Deus, que se revela na sua perfeição. Exprimem também as qualidades dos homens e mulheres chamados a serem filhos e filhas de Deus. São portanto  escolhidos entre as perfeições e os valores mais altos a que se possa aspirar na busca da  vida espiritual: Verdade, Amor, Liberdade, Vida.
            “Espírito”, cujo nome  deriva do que parece o mais subtil dos elementos; o ar, o vento, o sopro vital, designa o que há de mais íntimo em Deus (1 Cor 2, 10-11): sua força secreta e eficaz, a energia renovadora, inovadora e divinizadora. O primeiro nome  será o Espírito Santo, Deus acima de todo o nosso modo de ser, de agir, de pensar e até de fazer o bem, mas vindo por bondade e nos santificando, tornando-os semelhantes e unidos a Deus pelo Amor.
            Convém destacar  os nomes: Espírito de verdade, de santidade, de amor, de liberdade, de força, de vida, de ressurreição, de reconciliação, de comunhão, de remissão dos pecados,  de filiação divina, com um realce para o Defensor (Paráclito). Esses nomes apontam para  todas as perfeições e propriedades de nosso ser, de nossa vida, vindo de Deus e nos conduzindo a Deus. Coroando e como que explicando todas essas denominações, emerge a realidade primordial: o Espírito de Deus, Espírito do Pai, do Filho. 
            No estudo dos símbolos e nomes dados ao Espírito, a Deus e a seus mistérios, a linguagem joanina merece uma atenção especial por sua riqueza, sua originalidade e profundeza. Ela parte do que é o mais comum em nossas relações e conversas  cotidianas. Ser, nascer, conhecer, amar, estar em, permanecer, dar, vir ou proceder de, enviar (missão), comunhão, verdade, vida, luz, paz, alegria. Mas essa linguagem é inserida em um contexto ao mesmo tempo afetivo, espiritual e que favorece  uma elevação do sentido intelectual e vivencial  das palavras. 
            Assim todo essas noções são  levadas ao mais alto grau de perfeição e fineza para exprimir as nossas relações com Deus e até mesmo a comunhão de vida reconhecida como sendo a intimidade do próprio Deus.  

            · Um primeiro nome: “Espírito de Deus”.

            Após as imagens e símbolos, vamos meditar os nomes que visam dar-nos uma noção, uma espécie de definição  do Espírito.
            O primeiro, o mais geral e comum é precisamente “Espírito de Deus”. Essa expressão faz uma espécie de transição entre o Antigo e o Novo Testamento. O Espírito designa Deus mesmo, agindo de maneira propriamente divina, com o poder eficaz e íntimo de Deus. Mas se diz Deus “envia”, “dá” o seu Espírito, promete uma efusão de seu Espírito como dom por excelência  dos tempos messiânicos. Assim, os Profetas preparam a plena revelação do Dom pessoal do Espírito e da revelação da comunhão íntima e eterna do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
            O Apóstolo Paulo nos dá uma bela doutrina sobre o Espírito de Deus em analogia com o Espírito humano,em um texto que merece meditação: I Cor 2, 10 – 11.
            Certos trechos do Novo Testamento guardam o sentido abrangente, profético e evangélico, do “Espírito de Deus”, sendo suscetíveis de uma leitura compreensível já para os judeus e desvendando um sentido pleno para os cristãos. Assim no Evangelho da Infância: Jesus “concebido pela ação do Espírito Santo” (cf. Mt, 1, 20; Lc 1, 35); o “Espírito Santo sobre Jesus.” (Lc 4, 18).

            · “Espírito de Cristo”, “Espírito do Pai e do Filho”.

            É como “Espírito de Cristo”, prometido e enviado por Ele, que o Espírito é primeiramente revelado como Pessoa divina. Ele tem a missão de levar à perfeição a obra realizada por Cristo. Estando e agindo em Cristo, Ele é designado como “um outro Consolador” (cf. Jo 14, 16; 14, 26; 16, 13 – 15). Será aquele que manterá a  saudade e a presença – ativa e invisível - de Cristo após sua partida para “junto do Pai”.
            O Espírito inaugura a nova forma de verdadeira presença de Cristo, em uma identificação interior com cada discípulo e com a comunidade. É a presença salvadora, que comemora a presença visível, histórica do Cristo, fazendo de sua vida, de seu ministério, de sua morte e ressurreição a fonte de vida e de renovação para a  humanidade.
            O Espírito está presente e ativo na Palavra, no próximo, na comunidade, nos sacramentos, nos pastores e líderes, tornando presentes o Cristo, o Pai e o Filho nessas realidades do dia-a-dia.
            Sem o Espírito, sem seu influxo e sem a docilidade em acolhê-lo, todos esses dons podem tornar-se opacos, nos fechariam em nós mesmos ou nos limites da criatura.
            Em um nível de maior profundidade, os mais belos textos do Novo Testamento nos ensinam que  Ele é o Espírito do Pai e do Filho: Espírito do Filho que leva ao Pai; o Espírito do Pai que leva ao Filho.
            · “Espírito de Verdade, Amor e Liberdade”

            Verdade, Amor, Liberdade são atributos divinos revelados no Espírito e que, mediante o dom que Ele nos fará, se tornam qualidades dos fiéis, dos “espirituais”, dos habitados e transformados pelo Espírito.
            - Espírito de Verdade: Ele é a Verdade e nos introduz na verdade, na sabedoria, no discernimento, abrindo-nos os olhos da inteligência e do coração para vermos as coisas em Deus e segundo Deus, o que significa na sua realidade profunda.
            - Há um nexo íntimo e forte entre a Verdade, o Amor e a Liberdade, de que o Espírito é a fonte para nós. A Verdade primordial é  Deus se revelando e se dando como Amor e fonte de amor. A liberdade é a capacidade de amar plenamente, de viver e agir no amor e pelo amor.
            Tal é coração da doutrina evangélica condensada em Jo 14-16 e Rm 8.

            ·“Espírito de filiação e de oração”.
           
            Nas mesmas fontes joaninas e  paulinas, encontramos a insistência encarecida sobre o Espírito princípio de nossa filiação divina e como mestre único da oração.
            Note-se esse nexo vital estabelecido pelo Evangelho entre a verdadeira oração e a nossa filiação divina. Jesus nos ensina a rezar como ele, dando-nos a oração do Pai Nosso (Lc 11, 1 – 4; Mt 6, 9 – 13).
            E só aprendemos e podemos invocar  Deus como Pai, em virtude do Espírito de filiação divina que nos é dado e nos dá a possibilidade de orar como filhos (Cf. Rm 8, 14 – 18; 26 - 27; Gl  4, 4 – 7).
 
            ·“Espírito, Dom e fonte de Comunhão”

            A comunhão é o fruto todo especial da presença do Espírito. Ele é laço de amor: está no íntimo de cada um, não para fechar as pessoas em si mesmas ou no sabor da presença divina, mas para tecer  a união profunda, o encontro das consciências na mesma verdade e no mesmo dom de si.
            O Espírito Santo é o mistério, a realidade do Dom perfeito do Amor perfeito, o Dom gratuito, sem interesse próprio. Comunicando-se às pessoas, aos casais, às famílias  e às comunidades, Ele é a fonte desse amor  e desse vínculo de amor desinteressado e, portanto, da perfeita comunhão.
            Assim o Espírito é como a “alma da Igreja”, constituindo-a como a perfeita  comunhão de Amor. Tal é a essência da Igreja, que faz dela mais do que uma sociedade de índole religiosa, contando com a assistência do Espírito Santo. Sem dúvida é importante a assistência prometida aos Pastores da Igreja. Mas essa mesma assistência visa algo de maior, a própria  vida da Igreja no Espírito,dela fazendo mediadora da graça da fraternidade universal.
            O Espírito que, nas origens do mundo,  é representado como pairando sobre as águas para fecundá-las (cf.  Gn 1, 2) é enviado, na “plenitude dos tempos”, qual Espírito criador. No Símbolo dos Concílios que explica o Símbolo dos Apóstolos, professamos que o “Espírito Santo é Senhor e Fonte da Vida”. Ele é a força interior que vem do Pai e do Verbo, para realizar plenamente a  perfeição da criação, do reino da vida em todos os planos do universo visível e do mistério da participação da Comunhão divina.
            Assim se manifesta  o  que é o Espírito para nós, para a Igreja, para o mundo.

            Papel primordial do Espírito na vida Igreja e dos fiéis.

            A Nova Aliança surge e se desenrola a partir do 1º Pentecostes e de uma série de novos pentecostes. A difusão da Igreja é a propagação da Verdade divina, pela força e a graça do Espírito. Há um grande processo de transmissão de certeza e de convicção. A fonte primeira dessa  convicção   é a palavra dos Apóstolos, apoiada pela energia e pelos sinais do Espírito. Ela é confirmada pelo testemunho da vida das pessoas e comunidades animadas por uma experiência da presença e da  ação do mesmo Espírito. Da parte dos Apóstolos, dos seus colaboradores e das comunidades, resplandece uma confiança nos convertidos. Nestes se reconhecem a graça e os carismas do Espírito, que os tornam capazes de se tornar imediatamente pregadores, líderes, fundadores de comunidades.

            O ter recebido o Espírito Santo, dele e nele viver, é o essencial, é o elemento constitutivo da identidade dos fiéis e das comunidades.A questão: “Receberam o Espírito Santo”? é típica desse critério fundamental. Os que não receberam e não vivem do Espírito Santo não pertencem a Cristo e à sua Igreja (Cf At 19, 1 ss; Rm 8,9).
            Destaquem-se alguns indícios desse papel primordial do Espírito na vida da Igreja:
            · O Espírito envia os missionários, que são ao mesmo tempo os mandatários das comunidades. Estas rezam e jejuam, buscam ser dóceis á ação do Espírito, a qual é discernida e seguida em um clima de oração e de dom de si (Cf. At 13, 2 – 3). Os missionários partem entregues à graça do Espírito.
            · “O Espírito não deixou que eles anunciassem a Palavra na Ásia.” (At 16, 7). Semelhante expressão põe em relevo a total docilidade e a total dependência dos Apóstolos em relação ao Espírito que guiava a evangelização. Tudo indica que os missionários têm um discernimento muito fino, enraizado na afinidade que os identifica com o plano de Deus.
            · “Nós e o Espírito  Santo decidimos” (At 15, 28) Está aí uma outra palavra bem significativa. Sem dúvida, a Igreja apostólica não vivia sem problemas. Muito pelo contrário, não faltavam incertezas, conflitos e riscos de dissensões. Mas o que a caracteriza era o clima de diálogo, de consulta, de comunhão, na oração, na busca da plena docilidade ao Espírito. Assim, quando tomavam uma decisão podiam atribuí-la  à comunidade e ao Espírito Santo.

            Em que consiste a ação do Espírito?

            A questão é decisiva para a compreensão da mensagem e da vida da Igreja primitiva e da Igreja  hoje. Descrevem-se alguns fenômenos mais ou menos freqüentes que são os sinais aparentes de um dado permanente e profundo. Os fenômenos são ligados aos traços habituais de teofanias ou manifestações de Deus ou de algo de divino, na Bíblia ou mesmo fora dela, nas religiões entusiastas, por exemplo. A realidade profunda e permanente é algo absolutamente original, é o começo, a irrupção de uma vida nova, um conhecimento do mistério do Cristo, à luz das Escrituras e do Plano divino da salvação. Daí a compreensão de que Deus nos salva  em seu Filho e nele tudo nos dá e tudo nos pede. A presença do Reino se concretiza no modelo jovial e edificante da vida das comunidades após receberem o dom de Pentecostes. O povo maravilhado  verifica que as promessas começam a se realizar na Igreja da Nova Aliança.
            Pode-se confirmar a narração  dos Atos pelas indicações  de  Paulo, tanto mais sugestivas quanto são alusivas às atitudes e convicções de que vivem seus destinatários (Cf. Gl 3,1 ss). Vê-se que, na Igreja apostólica, a vida dos discípulos começa com a experiência de “receber o Espírito”, normalmente após um período de instrução e pelo batismo acompanhado da “imposição das mãos” (feita pelos Apóstolos ou seus colaboradores).É projeto anunciado inicialmente em Atos 2, 28, e realizado nas  narrações seguintes.
            · Em síntese: A nova Aliança, a novidade do Evangelho  é ser, viver, ver, pensar, sentir, agir “no Espírito.” Tal é o essencial da mensagem do Apóstolo  Paulo.
            · Há uma linha divisória, um antes e um depois: “Vocês receberam o Espírito” (Gl 3, 2,  5). E um grande princípio ou critério decisivo: “Quem não tem o Espírito de Cristo não pertence a Cristo” (Rm 8, 9). “Só os  que são animados pelo Espírito são filhos de Deus”. “O próprio Espírito se junta a nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus” (Rm 8, 16).
            · É muito sugestiva essa aproximação do nosso “espírito” e do “Espírito de Deus”. Pois o próprio Paulo explica: “Quem conhece o que há no homem senão o  espírito do homem que nele está?  Assim também as coisas de Deus, ninguém as conhece senão o Espírito de Deus” (1 Cor 2, 11).
            · De Paulo e de João vem a descrição desses atributos do Espírito, os quais constituem as propriedades, as energias e o dinamismo da  vida cristã. Verdade, Liberdade, Amor, Filiação, Paz, Alegria. Tais são os grandes fachos de luz, clareando o caminho da primeira  “nova era do Espírito”, pregada pelos Apóstolos desde Pentecostes. Bom seria que  a humanidade tenha dela a mais viva e forte compreensão e uma imensa nostalgia.
            De maneira, sem dúvida,  original, a mensagem de Paulo se encontra ainda aqui com a doutrina joanina: O Espírito Santo nos é dado para que sejamos de Cristo, para que o conheçamos em toda a verdade, para que nos conformemos a Cristo.
            O encontro com Cristo seria puramente exterior, Paulo diz: “segundo a carne” (cf. 2 Cor 5, 16), se o Espírito de Cristo não interioriza em nós a palavra, o amor, a presença de Cristo. Mas, o Espírito de Cristo é o Espírito do Pai e do Filho, é o amor que os une. Por isso, o dom do Espírito nos conforma ao Filho, nos faz filhos e filhas adotivos de Deus, reconhecendo e invocando o Pai, à semelhança e na intimidade do Filho.
            Somos incitados a olhar para esses dados que nos revelam nossa verdadeira identidade cristã: “Não é de Cristo, quem não tem o Espírito de Cristo”. ”São filhos de Deus somente os que são conduzidos pelo Espírito de Deus” (cf Rm 8, 9, 12s).
            O ensino do Apóstolo supõe essa experiência pessoal e comunitária do dom, da recepção e da ação do Espírito.
            Mais ainda, fica  estabelecida com toda clareza a  equivalência entre estes programas de vida: “estar, viver no Espírito,” “na caridade”, e “estar, viver no Senhor”,  “em Cristo”. Tal é  a verdadeira identidade do cristão que aceita a plena verdade de Deus no Novo Testamento.
            Muito especialmente, “conhecer no Espírito” é ter acesso à Verdade. Mesmo Cristo tem que ser conhecido no Espírito. Não basta conhecê-lo de um modo natural (como aqueles que o freqüentaram, com ele conviveram) ou ser informado pelas testemunhas ou pela letra do Evangelho. 
            A pregação de Paulo visa levar a esse conhecimento e a essa vida, iluminados pela Verdade de Deus. Por isso essa pregação não se funda na habilidade, na competência ou técnicas humanas mas no “poder do Espírito”. É a grande e insistente proclamação do Apóstolo em 1 Cor 1,18-2,15. Só o Espírito nos introduz na Verdade, faz com que a palavra anunciada e ouvida seja para nós Palavra viva de Deus.

            Há um acordo profundo da mensagem de João com  o testemunho dos Atos, mas sobretudo com a doutrina paulina.
            É para nos introduzir no pleno conhecimento de Deus que Jesus  promete enviar-nos o Espírito da Verdade. “É Ele o Espírito de Verdade que o mundo é incapaz de receber”... “Ele nos conduzirá á plena Verdade”... “Ele nos ensinará todas as coisas e nos relembrará tudo o que Jesus nos ensinou”.  A leitura atenta  da seção: Jo 14-16 nos desvenda toda uma doutrina e uma espiritualidade, cujo centro e cuja inspiração é a Verdade do Espírito.
            - O Espírito é a Verdade, na sua acepção objetiva: é a Realidade  de Deus, de seu Amor, de seu plano misericordioso, vindo a nós, para que estejamos e permaneçamos na Verdade.     
            - O Espírito  é a Verdade em nós, dando-nos a capacidade de aderir ao que nos é revelado e a entrar na intimidade com o Pai, na Comunhão trinitária.
            É importante compreender como Cristo é a Verdade e como o Espírito é a Verdade.
            - Cristo é o Rosto, a Imagem divina que a nós se mostra, fala, age, sendo uma mensagem viva de Deus em sua bondade de Pai.
            - O Espírito é  intimidade amorosa do Pai e do Filho se interiorizando em nós.
            Tanto a mensagem Paulina quanto a joanina encontraram a mentalidade e a pretensão dos gnósticos, que exaltam a inteligência e o conhecimento como fontes únicas da salvação.A esse desvio insinuante, eles opõem a Fé que se torna eficaz e salvadora pelo amor (cf Gl 5,6).
            Uma espécie de “nova gnose” é hoje uma ameaça dentro e fora da Igreja,  o que dá uma grande atualidade aos ensinamentos de S. Paulo e de S. João.
            Com o Novo Testamento, especialmente em suas tradições joaninas e Paulinas, havemos de insistir em dois princípios ou critérios essenciais: O conhecimento só tem verdadeiro valor espiritual se brota do amor e leva ao amor.O conhecimento só nos conduz a Deus que é Amor, quando acolhido na docilidade ao Espírito de Amor (não como uma conquista pretensiosa de nosso saber) e nos conduz nesse Amor à comunhão com Deus e com nossos irmãos. 
            Como acolher o Espírito?

            Nosso ponto de partida, nossa  inspiração é sempre esta: Como o Espírito se revela? Ele mesmo nos ensina a reconhecê-lo e a acolhê-lo como Ele vem: na força e na suavidade do Amor.
            O Espírito tudo revela mantendo-se como que humildemente  velado
            Ele revela Deus em sua profundidade divina, revela a realidade e o sentido de tudo em Deus, revela-se Deus por sua luz e sua força divinas, mas não manifesta seu Rosto de pessoa divina.
            Jesus, o Filho único de Deus, o Verbo Eterno e Incriado, entrou em nossa história, assumiu nossa natureza, nosso jeito de ser, de agir, de sorrir, de chorar e até de morrer. Nós o adoramos como Senhor, mas também o vemos como um irmão nosso. Mesmo na glória, mostra-nos suas chagas. E o Filho nos dá e se declara a imagem do Pai: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Por essa semelhança filial, somos ajudados a dar uma figura concreta à Pessoa do Pai, embora saibamos que ela excede toda representação e toda idéia que dela esboçamos com os olhos e o enleio de nosso coração.
            O Espírito é o segredo de Deus que nos atrai e nos escapa. Habita em nós, está em nosso espírito, pelo qual nos conhecemos, -  mas não nos é dado vê-lo diretamente nem mesmo como  contemplamos  nosso rosto refletido no  espelho. Como nosso espírito, o Espírito divino faz ver sem  ser visto. É a luz suave na  perfeita transparência, estabelecendo-nos também na humilde  transparência, dando-nos o gosto e a busca da verdade. Guia-nos a olhar para a realidade, para o outro, para Deus, sem apego a nós mesmos, introduzindo-nos – se formos dóceis, - na noite escura e ditosa da amorosa  contemplação divina.
            Ele se revela como um Amor sempre escondido e se dando no escondido e em tudo de nossa vida. Dando-se e revelando-se no tempo, na história, no rosto das pessoas, dos homens e das mulheres. Dando-se e revelando-se segundo as necessidades e as capacidades, suscitando, ampliando e aprofundando as aspirações, os desejos, as possibilidades interiores e comunitárias para a acolhida de Deus que vem no seu Amor.
            O Espírito é a luz e a energia ativas da pedagogia divina, iluminando, amoldando e guiando, de dentro, do interior, a história do povo de Deus e de toda a humanidade.
            Havemos de compreender com a inteligência e com o coração a acolhida que daremos ao Espírito:
            Descobrir e seguir os seus caminhos, suas  etapas e formas amorosas de vir a nós, sua linguagem própria, tecida de símbolos que indicam traços do rosto de Deus e indicam as profundezas do coração divino. Essa linguagem  se enraíza na história e caminha com a história, adaptando-se às etapas e progredindo com elas, revelando sentidos cada vez mais  profundos.
            De si, seus carismas , seus  dons nos encaminham ao Dom que é o próprio Espírito,na medida em que entramos pelo caminho da doação de nós mesmos. Mas o apego, a recusa de nos dar  retardam a  marcha e podem até tornar os dons ambíguos. Seja porque a eles nos prendemos; seja porque preferimos os que mais nos agradam, os que mais nos valorizam aos nossos olhos,  sem visar ao dom mais excelente, o puro amor desinteressado (1 Cor 14, 1).
            A reflexão teológica alimentada pela leitura da mensagem bíblica nos encaminha ao momento decisivo, à opção pelo essencial, pela Verdade,  pelo Dom e pelo Amor que vem de Deus, que é o próprio Deus .


Pentecostes, a Graça e os carismas do Espírito.
A originalidade do cristianismo, que refulge particularmente em suas nascentes evangélicas, é a constante confluência da Palavra  e do Dom do Espírito.[1] O Espírito acende e atiça o fervor, mas vem acompanhado de uma inteligência que busca a compreensão e a expressão dos fatos de hoje à luz de uma Palavra que vem de ontem, e que remonta às origens. Ela ilumina os problemas de agora, tudo à luz de um Princípio e de um Fim da história, do sentido definitivo que brota  do Amor  que nos salva.
Paulo se apresenta, fala e age como o homem da Palavra e do Espírito. E tem mesmo a plena consciência de ser como um “possuído do Espírito”, pois “só é de Cristo quem age movido pelo Espírito” (Rm 8,11). Ele testemunha que o Espírito, não só é  o único que “nos ensina a rezar”, mas que Ele mesmo “intercede em nós com gemidos que palavra alguma pode interpretar’ (Rm 8, 20). Por outro lado, sua pregação apostólica é a” Palavra na força do Espírito “(1Cor 2, 1-5)”.
Paulo nos dá o ensino definitivo sobre os dons e carismas do Espírito. Ele se baseia na experiência vivida, sua e das comunidades. E profere uma Palavra, consciente de se enraizar nessa experiência quente de Pentecostes e na corrente tranqüila de uma tradição que vem dos profetas e do próprio Senhor Jesus Cristo.
            Os dons são múltiplos e ordenados segundo uma hierarquia. Esta se estabelece  de acordo com a aproximação ou afinidade dos diversos dons com o próprio Dom divino. Devemos, portanto,  acolhê-los e vivê-los na sua totalidade e na sua ordem divina.
Na linguagem catequética, inaugurada pelo Apóstolo Paulo, e aperfeiçoada  no ensino da Igreja, distinguimos: os carismas, a graça santificante e todo o cortejo das graças atuais, as virtudes teologais,  os sete dons que  aperfeiçoam as virtudes. Os dons para os quais se guardou o nome grego de “carismas”, não visam diretamente santificar-nos mas capacitar-nos para bem servir o outro e a comunidade. Todo esse cortejo de dons leva-nos ao próprio Dom pessoal do Espírito. Nenhum desses dons pode ser negligenciado ou descurado. Mas havemos de aceitá-los todos na ação de graças e desenvolvê-los na ordem em que nos são dados. Deus nos conduz a Deus de modo divino, no Amor.
O facho de luz que recebemos do Apóstolo é essa proclamação humilde e audaciosa: ser cristão é discernir no Espírito os dons, os carismas do Espírito. Haja entusiasmo no louvor. Haja êxtase e raptos na oração pessoal ou comunitária. Mas, guarde-se o critério dos critérios: o Espírito é o Deus do Amor que leva ao amor humilde, serviçal, edificador da comunidade (1 Cor 12,31-14,1), é o Deus da ordem e não da confusão (1Cor 14, 33, 40). Não perturba a sua criatura nem a sua comunidade. Entre emoções, vibrações e entusiasmos de fervor, surge e domina a Palavra que dá o sentido e indica os caminhos que levam para Deus e a colaboração com seu plano de Amor, e mantém o nosso culto como racional e tranqüilo.
E aqui chegamos ao essencial. Paulo intervém e escreve não é primeiramente para exaltar os carismas, sobretudo os mais vistosos. Ele surge, claro e firme, para mostrar como utilizar os carismas. Ele afirma uma ordem entre eles e estabelece uma prioridade. Os dons devem ser acolhidos na ação de graças e orientados para o Dom. E este Dom é o Amor. Não um amor qualquer ou tal como um qualquer o pode definir do seu jeito. O Amor tem um nome escolhido pela comunidade apostólica para bem o distinguir : é a Caridade (agape, em grego). “A Caridade que é difundida em nossos corações pelo Espírito que nos é dado” (Rm 5, 5). A Caridade é descrita e cantada em uma série de gestos e traços bem simples, mas inconfundíveis. Quem sabe conseguiríamos colher  em uma  definição singela  este jorro incandescente, que é o capítulo 13 da 1ª Carta aos Coríntios?  Tentemos a síntese sabendo que será sempre incompleta: A Caridade é o amor gratuito e generoso, que só  pensa no outro, buscando fazer todos felizes, dando tudo o que pode e se dando totalmente na doçura e na paciência.
Aos Coríntios, sedentos dos dons do saber, de inteligência, ciência, de falar e interpretar línguas, de altas e compridas orações extáticas, o Apóstolo explica com muita firmeza e certo humor que tudo é deveras muito bom e muito belo. Mas tudo isso só tem valor se vem da Caridade e leva à Caridade. Mais miudamente ele esclarece: o que conta mesmo é o serviço, é a edificação da comunidade, em um contínuo e escondido movimento da divina Caridade. O Apóstolo  insiste, em contexto de crítica às pretensões  da “gnose”: “O conhecimento (Gnosis) envaidece, a caridade edifica” (1Cor 8,1-3; e ainda 10,23-24).  E entre os carismas, há uma ordem hierárquica: o que mais concorre para o serviço do próximo e para o trabalho comunitário predomina e há de ser preferido  em nossa escolha e em nossas súplicas ao Espírito.
A prática da Renovação Carismática  vem nos ajudar aqui a bem compreender esses critérios de discernimento. Em seu empenho de colar à palavra de Deus e de estar a serviço de seus irmãos e irmãs, comunidades  carismáticas ontem e hoje praticam e exaltam de forma prioritária a oração de louvor. Ela é sem dúvida a mais excelente. Brota do que há de mais profundo e próprio à Caridade, que é antes de tudo: o amor que se compraz e se alegra em Deus e o contempla no louvor e na ação de graças. Mas essa louvação, íntima e expansiva, visa no amor ao Deus que é Amor, Dom, que se empenha e nos quer empenhados no serviço e na busca da felicidade de nossos irmãos. O teste prático para quem se compraz no gosto de louvar é a força com que se consagra ao serviço e à solidariedade fraterna.
Essas grandes certezas evangélicas, proclamadas com clareza e vigor pelo Apóstolo, inspiram e animam a teologia dos carismas, carinhosa e minuciosamente elaborada pelo teólogo por excelência da Igreja, Santo  Tomás de Aquino.  
O estudo dos carismas (na Segunda  Parte da Suma Teológica, II-II, 171-178).  não vem apresentado na perspectiva do proveito e satisfação da pessoa, mas em plano comunitário. Liga-se  à reflexão sobre as formas de vida ativa e contemplativa e à diversidade dos  ofícios e estados de vida. O que se visa diretamente é o bem comum, que merece tanto mais o qualificativo de “divino” quanto se mira  à obtenção dos próprios objetivos da Igreja. Tomás distingue e ordena o conjunto dos carismas e define cada um deles olhando sempre para o bem da comunidade, O aperfeiçoamento espiritual das pessoas só é encarado indiretamente, enquanto decorre do melhor serviço prestado aos outros mediante essas graças (“grátis dadas” ou carismas), que não são de si santificantes.
O Santo Doutor estabelece a topologia e a hierarquia cuidadosa dos carismas, a partir da profecia. Ela é estudada de maneira muito ampla, sendo situada muito especialmente como a iluminação e a elevação da inteligência dos mediadores da revelação ou dos transmissores escolhidos da tradição, que perpetua a revelação na Igreja de maneira viva e atual. Tal é o belo tratado que se estende da q. 171 à 178, coroando a ética das virtudes, que vem a ser a II-II. [2]
Essa simples enumeração de questões evidencia o empenho do Teólogo de elaborar de maneira rigorosa a doutrina do Apóstolo: os carismas visam facilitar a realização da missão da Igreja, sobretudo o anúncio e o testemunho do Evangelho. Estamos nos antípodas do entusiasmo ligado ao culto apoteótico que os antigos prestavam aos reis, aos heróis, aos vencedores  e que a mídia entretém e manipula hoje na glorificação e na idolatria dos astros da beleza, dos esportes e diferentes competições. Há aí uma espécie de meio “êxtase”, de limitada saída de si, pela exaltação narcísea da imaginação e da sensibilidade. Mas semelhante projeção emotiva não leva ao dom de si e ao serviço generoso do outro e da comunidade. Esse tipo de entusiasmo egocêntrico se fortalece e propaga em contágios  coletivos que alienam as massas em atitude de divertimento e de servilismo. Teve sua expressão rutilante e sua idade de ouro nos comícios que preparam o advento das ditaduras, especialmente fascista e nazista.[3]
 Mais ainda, ele pode encontrar um campo privilegiado nas manifestações espetaculares da religião, que têm algo de similar nos programas televisivos de auditório ou de culto dos ídolos publicitários. O Apóstolo evocava que os fiéis, quando ainda pagãos,  eram conduzidos como seres inertes e sem voz a semelhantes cultos idolátricos (1Cor 12, 1-2). Os discípulos do Evangelho, ao contrário, hão de ser guiados pelo Espírito, mediante a força interna do amor e de um discernimento livre e responsável. O entusiasmo divino, aquecido pela fé, pela esperança e pela caridade, não  impele o ser humano a evadir-se em busca de uma imagem idolátrica  de si ou de outrem, mas o convida a sair do egocentrismo e do narcisismo, no dom generoso e efetivo de si.
Essa mensagem apostólica, explicada pela teologia de Tomás, não exclui os riscos de ambigüidade nos entusiasmos religiosos de ontem e de hoje. A ambigüidade não se elimina por um simples apelo aos carismas do Espírito. Há um único critério que nos vem da revelação evangélica e que a teologia tenta sempre avivar e explicar graças ao confronto com a experiência do povo fiel. É a caridade que há de inspirar e animar o projeto de uma saída constante de si e de realização lúcida e corajosa de si, não em identificação com possíveis ídolos imaginários, mas com o próprio Deus presente e reconhecido no outro, que pelo amor se torna próximo e irmão. No coração de tudo, está o Espírito de Amor e de Liberdade semeando amor e liberdade. Sem o Espírito, não há, para nós,  este porvir que não é um simples acontecimento, por mais fabuloso que se possa imaginá-lo. É uma mudança qualitativa. Mas o Espírito precisa de nós, pois vem para nos fazer existir por nós mesmos e nos valorizar em nosso ser e agir. A  Nova Era do Espírito será, portanto, o triunfo da criação divina e da criatividade humana.

O Dom pessoal  do Espírito , eis a questão.

Estamos avançando na teologia do Espírito Santo. o Espírito é o Amor. Ele o é, em sua perfeição divina, procedendo eternamente como o Amor do Pai e do Filho. Tomás explica: o Filho é o Verbo ou a Palavra de Deus. É eternamente  gerado, à semelhança (longínqua!) com nosso verbo mental, concebido intelectualmente; especialmente se o encaramos  como  o conceito que cada um tem de si quando se pensa a si mesmo. Por isso, o Filho é Imagem perfeita do Pai. Mas sendo Amor, o Espírito Santo tem como  nome próprio o Dom: Dom total que é  a expressão concreta do Amor perfeito do Pai e do Filho.
Aquele que é o Dom Eterno no seio da Trindade vem até nós, enviado pelo Pai e pelo Filho, qual Dom perfeito que nos conduza á intimidade dessa  comunhão trinitária de amor. Na realização dessa missão de ser o Dom, de se fazer aceitar amorosamente como o Dom que vem do Pai e do Filho, o Espírito Santo nos cumula de dons.
O dom é uma espécie de pronome gracioso que exprime e torna presente o amor. Os dons do Espírito não são propriamente coisas que nos enriquecem e menos ainda nos engordam, impedindo-nos a marcha e ascensão nos caminhos do amor.  São dons que vêm como energias, como formas, não de ter, mas de  ser mais e melhor. São como forças do Amor, que é o Dom perfeito.  E  esses dons visam nos dispor a acolher o Dom que é o próprio Espírito de Amor.
O Evangelho de João joga sempre com esse par de verbos: “Amou e deu”. O sujeito do amar é em geral o Pai: “O Pai ama o Filho”, Jesus Cristo: “O Pai ama o mundo”,  nossa maravilhosa e difícil humanidade. E aí se introduz essa pequenina e extraordinária partícula de ligação: “Amou e deu”, “Ama e dá”. O amar é assim conectado ao dar, por um simples e, que indica a fonte, o motivo, a razão do dom. “Amou e por isso, por essa única razão de amar, deu todos esses bens”. Seguindo sem dúvida o mesmo  tipo de nexo semítico e a mesma inspiração evangélica, Paulo proclama: “Cristo me amou e se deu por amor de mim” (Gl 2,20). Está aí um dos pontos altos, senão o mais elevado pico, da revelação do Novo Testamento.
O dar é a face visível do amar. O amor dá, se dá, porque é essa a sua energia vital e incontida. Ele se mostra através do dom, e mediante o dom visa criar um plano inclinado, para que o retorno do amor se faça mais vivo, mais pronto, mais intenso.Há, sem dúvida,  certa ambivalência na prática de nossos dons ou presentes. Infelizmente, mesmo nas relações com Deus, podemos falsear o jogo. E então, lá vem a história  de  buscar e utilizar os dons divinos feito iscas, ganchos e anzóis para malandras pescarias nos templos e fora deles. Não se chega hoje às simonias qualificadas dos banqueiros da cristandade. Eles investiam piedosamente comprando o usufruto de santuários para vender toneladas  de certificados de indulgências. Mas a prática  mercantilista dos dons estende a corrupção ao verdadeiro santuário de Deus, que é o coração feito para amar.
Os dons do Espírito nos introduzem no contínuo vaivém do Amor. O Dom que Deus nos quer comunicar é Ele mesmo. “Pela graça somos chamados a fruir da própria pessoa do Espírito Santo”, é o que diz Santo Tomás, escolhendo bem as palavras. “Fruir” para ele é gozar a felicidade de amar uma pessoa, em oposição a usar de uma coisa ou se servir de um objeto. O Dom pessoal do Espírito à pessoa que entra nesse laço do Amor divino, é a Graça por excelência, é o pólo de atração, é a finalidade e a razão de ser de todas as graças. É mesmo o centro de todo o plano amoroso da providência de Deus no céu e na terra.
            Eis o sentido divino que dá rumo à nossa vida. Somos homens e mulheres, imagens vivas da Trindade divina. E é no Espírito e pelo Espírito, que nos unimos e assemelhamos à Comunhão Trinitária. Tal é a mensagem que recebemos da palavra e da comunidade dos apóstolos de Cristo.
            Concentramos  nossa atenção ao que há deveras de mais central, de mais atraente e talvez de mais difícil. É o ápice da revelação divina. Aprendemos quem é Deus e quem somos nós no coração de Deus.
            Dessa forma, por seus  carismas o Espírito nos quer purificar e libertar de  todo egocentrismo e de todo narcisismo. Não nos detém na complacência dos fenômenos, do que em nós se possa passar, mas nos transforma em tochas para os outros, em gente toda voltada para o serviço e a atenção ao próximo e à comunidade. É o objeto de sua insistência em  1 Cor 12, 7; 18-26; 14, 12, 26. 
            Temos. assim, de nos empenhar  em um forte e suave esforço de contemplar  o que há de mais profundo, de mais sublime na revelação e na teologia. Esse segredo amoroso de Deus não se apresenta como um desafio à nossa razão. É  um convite à nossa inteligência, ao nosso coração, ao nosso gosto de viver. No centro do Novo Pentecostes emerge a mensagem  primordial da Igreja que se define como a comunidade congregada em nome da Santíssima Trindade.
            Ela proclama a Igreja santa, reunindo pecadores, mas ensina que todos eles, homens e mulheres, são chamados à santidade. Este ensino do capítulo V da Constituição Lumen gentium sobre a identidade do ser cristão é o grande critério para apreciar todos os fenômenos e comportamentos na Igreja. Só é autêntico o que santifica, o que é docilidade ao Espírito Santo e santificador. O que constitui o verdadeiro carismático é  essa consagração, essa devoção ao Espírito levando à santidade, impelindo a irradiar santidade, a edificar a Igreja e a promover uma civilização do amor.
            Insistamos no essencial, dando valor, mas valor  relativo aos meios que a ele nos conduzem. Somos projetos  de Deus. Todo o nosso ser está programado  para ir para Deus, para entrarmos em comunhão  com Deus que é Comunhão de Amor, guiados e animados pelo Espírito que é o Amor.

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL:

Limitamo-nos a indicar as obras em que desenvolvemos e documentamos os temas aqui abordados.

- Tomás de Aquino e a Nova Era do Espírito. Edições Loyola, São Paulo, 1998. O livro termina por uma antologia dos grandes textos de Santo Tomás sobre o Espírito Santo.
- 2000. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.Comunhão divina e solidariedade humana. Mesmo Editor, 2000. A Trindade e cada Pessoa divina são estudadas sob o ângulo bíblico, teológico e místico.
- Crer no amor universal, visão histórica, social e ecumênica do “Creio em Deus Pai”. Loyola, São Paulo, 2001. Uma parte do livro é consagrada ao estudo do 3º. Artigo do Credo: Creio no Espírito Santo.
- Evangelho e Diálogo Inter-religioso, Loyola, São Paulo, 2003.
- Falar de Deus e com Deus, Caminhos e descaminhos das religiões hoje, Loyola, São Paulo, 2004.
Nesses livros se encontram ampla informação bibliográfica. Damos grande relevo às obras de Y. Congar.



[1]. O tema é tratado em uma síntese sugestiva por Y.CONGAR,  A Palavra e o Espírito (La Parole et le Souffle), trad. de Luís BARAÚNA, São Paulo, Edições Loyola, 1989. Para uma visão geral da doutrina desse grande teólogo do Espírito e da Igreja, ver Luis Eustáquio dos Santos NOGUEIRA, O Espírito e o Verbo: As duas mãos do Pai. A questão pneumatológica em Yves Marie-Joseph Congar. São Paulo,  Paulinas, 1995.
[2]  O  conteúdo das questões 171–174, sobre a profecia,  já fora minuciosamente e amplamente aprofundado na q, 12 do conjunto de questões Sobre a Verdade. Sempre nessa  perspectiva comunitária, a q. 175 se empenha em elucidar a dimensão do conhecimento tão importante na profecia, tratando do “rapto” ou do êxtase. Os aspectos de comunicação, que vêm prolongar a profecia, são considerados na q. 176  Sobre o dom das línguas e na q. 177 Sobre o dom da palavra. Finalmente, na q. 178, o dom  dos milagres é apresentado e explicado como a confirmação divina que dá força e credibilidade à palavra salvadora.
[3] O fenômeno foi estudado com amplidão e cuidado por S. TCHAKOTINE, Le viol des masses par la propagande politique, Gallimard, Paris, 1952. Obra verdadeiramente fundamental, apesar de um recurso excessivamente sistemático à doutrina pavloviana dos reflexos condicionados. Consagrei ao tema o capítulo 4o. “Action sur l’homme: Dictatures totalitaires” do livro: Information et propagande. Responsabilités chretiennes, Ed. Du Cerf, Paris, 1968, pp.237-289.

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