V Congresso Nacional do MC
“Necessário vos é nascer de novo. O Espírito sopra onde quer. A ação do
Espírito Santo no Brasil e no mundo. MC: Sopro do Espírito”.
Tema: Espírito Santo
em tempos de Pentecostalismos os
desafios do discurso Teológico
Frei
Carlos Josaphat OP
A espiritualidade e a
teologia são hoje convidadas a acolher um novo Pentecostes, abraçando com
entusiasmo mas igualmente com muito discernimento a imensa riqueza dos dons do
Espírito na diferentes formas de movimentos pentecostais e carismáticos. Esses
movimentos mereceram uma menção prioritária do Cardeal J. Ratzinger, hoje nosso
papa Bento XVI.[1]
Poderíamos dizer que
há na Igreja e no mundo como que uma saudade e uma grande sede do Espírito
Santo. Sem dúvida jamais a Igreja cessou de cultuar, de invocar e exaltar o
Espírito que é Senhor e Fonte de Vida, como proclama o Símbolo
Niceno-Constantinopolitano. “Senhor e
Fonte de vida” é o título de uma bela e profunda encíclica de João Paulo
II.[2]
Itinerário e critério teológicos.
No empenho de ativar e
incentivar a acolhida do novo Pentecostes, cujo
ponto forte e luminoso resplandeceu no Concílio Vaticano II (1962-1965),
nossa reflexão teológica fará bem em realçar a grandeza desse Mistério de Amor
e de Vida que é a Pessoa divina e o Dom salvador e santificador, o Espírito
Santo, Deus com o Pai e o Filho na Comunhão trinitária. Buscaremos em seguida contemplar e esclarecer os dons que nos
vêm desse Dom Divino e Pessoal, e a ele
nos hão de encaminhar. É o que nos
permitirá de estabelecer os critérios para bem distinguir o valor e a
hierarquia dos carismas, bem como dos fenômenos pentecostais, que acompanham
por vezes os movimentos que têm surgido na Igreja e no mundo; sem no entanto
nos deter em sua apreciação pormenorizada.Nossa tarefa será puramente
doutrinal, apoiada na leitura e na compreensão intelectual e espiritual da
mensagem da Fé.
No centro de nossa Fé, o Espírito
de Vida e de Amor.
Bem no coração do
Símbolo em que a Igreja elaborou a profissão de fé que recebemos dos Apóstolos,
contemplamos e proclamamos o Mistério de Vida e de Amor que é o Espírito Santo.
Toda a nossa vida é consagrada à Santíssima trindade, para que seja um
sacrifício de adoração e de ação de
graças, de tendência constante ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. Ele é o
Dom de perfeita intimidade e comunhão em Deus e para nós. No Espírito e pelo
Espírito, o Pai e o Filho vêm e se dão a nós. No Espírito e pelo Espírito, nós
nos damos ao Pai e ao Filho, entramos na Comunhão Trinitária. E somos impelidos
à solidariedade fraterna universal.
Cristo, o Verbo, é a
Imagem perfeita de Deus. O Espírito é o Amor e o Dom que é como o dinamismo
desse Amor. Daí, o caráter objetivo da missão de Cristo, Verbo Encarnado. Ele
se dá como exemplo e o mestre que ensina por palavras, por obras ,
pelo dom de sua vida. O Espírito é o Mestre interior, que torna presentes e
ativos no íntimo de nós os ensinos, os gestos, a figura, a morte a ressurreição de Jesus. Pelo Espírito, Cristo está em nós e
nós estamos em Cristo.
Na terceira parte ou
terceiro artigo abrangente do Símbolo dos Apóstolos, contemplamos o Espírito
como fonte de vida, de unidade, de santidade para a Igreja;pois esta é especialmente atribuída ao Espírito, como a
criação aparece como a obra do Pai e a redenção como realizada pelo Filho
encarnado. Pela Igreja, “sacramento da
reconciliação universal”, o Espírito Santo será para toda a humanidade a fonte
da graça e da glória, do perdão dos pecados, da comunhão na santidade, da
ressurreição e da vida eterna.
Como fonte e objeto de
nossa contemplação perdura sempre no coração dos fiéis e de toda a Igreja, o
Deus Espírito Santo, o Amor em Deus e vindo de Deus sobre o mundo, realizando a
nova criação à semelhança e na dependência da Comunhão trinitária. No seu
grande empenho de se definir hoje em
toda a sua verdade, fora de qualquer controvérsia, e como comunidade de
salvação e de paz para a humanidade, a Igreja reunida no Concílio Vaticano II,
elaborou com todo cuidado e carinho a Constituição Lumen gentium (21.11.1964), cujo primeiro capítulo põe em relevo,
antes de tudo, o “mistério da Igreja”.
Nele, logo de entrada,se destaca com muita complacência, como primeiro
princípio explicativo: “a Igreja, povo congregado na unidade do Pai e do filho
e do Espírito Santo” (No.4).
Com uma nota de
entusiasmo e de fervor se descreve e elucida o que é o Espírito para a Igreja:
fonte de vida, de graça, de perdão, de oração,
de santidade e de ressurreição. Como no verdadeiro templo da Nova
Aliança, o Espírito habita a comunidade e os corações dos fiéis. (Ibidem).
Assim, o Espírito
Santo está no centro, é o Centro da alma e da Igreja. Com sua energia criadora
e santificadora, Ele aí está sempre
infundindo a verdade, a liberdade, o amor, a comunhão e o dom de si, afirmando-se
qual força renovadora dos corações, das consciências,da sociedade e da história.
“Creio no Espírito Santo”. O “crer” de nossa
profissão de fé é a proclamação de que o Espírito existe verdadeiramente, mais
ainda: que nos consagramos com todo o nosso ser a este Amor se difundindo nos
corações dos homens e das mulheres, acolhendo-o com toda a nossa alma e todas
as nossas forças, como a fonte da paz, da alegria, da reconciliação com Deus e
com toda a humanidade. Ele é o Dom da
santidade evangélica, que desperta no
mundo o sentido da justiça e da
solidariedade.
“Creio no Espírito
Santo”. Assim, fazemos nosso todo o plano de Deus. Tudo o que o Pai realizou e
realiza na criação, tudo quanto o Filho viveu, sofreu, projetou e empreendeu
entrando em nossa história, - pelo dom e aceitação do Espírito, - se
interioriza em nós, em nossas pessoas e em nossas comunidades. É o Espírito de
Deus em nosso espírito, o Coração de Deus em nosso coração. É o que se condensa
no belo ensinamento de Rm 8, 9 – 11; 8, 16.
Na
revelação e na acolhida do Espírito se
desdobra o dom descendente e ascendente
do Amor. Temos a felicidade de crer no Amor Universal. Ele vem a nós e nós
vamos a Ele, em um movimento circular, que constitui a mensagem da revelação, a trama da história
da salvação condensada no Símbolo dos Apóstolos.Assim se resume a Bíblia, do
Gênese ao Apocalipse. É um movimento circular, uma parábola, que parte da
comunhão do Pai, do Filho e do Espírito de Amor, e a essa comunhão nos conduz.
É o plano divino evocado com insistência muito afetuosa nos
últimos Discursos joaninos de Jesus. Aí se empregam verbos de movimento: “se
alguém guarda meu mandamento de amor, o Pai e Eu viremos a ele” - para
exprimir o dinamismo da Vida, da Verdade, do Amor que está em Deus, que é Deus
e que se dá a nós.
Oramos, empenhamo-nos
em crescer na fé e santidade, para
entrar na intimidade e na energia transformadora dessa divina circulação do
Amor. O dom do Amor que é o Espírito,
“difundido em nossos corações” (Rm 5,5), e o dom que fazemos de nós mesmos no
Espírito e pelo Espírito, eis o que nos realiza como criaturas, imagens, filhas
e filhos de Deus. É a nossa vocação divina e humana: amar e ser amados.
Anima-nos a certeza de que “fomos amados primeiro”, por um Amor eterno e
“sem arrependimento”. Esse Amor é o Espírito de Deus em nós.
A teologia começa por
evocar a realidade desse Mistério. Seu critério primordial será simples e
exigente:Toda experiência de dons e carismas há de conduzir a esse Mistério do
puro e infinito Amor. O que não aponta e tende para ele se distancia da Verdade
divina.
Revelação progressiva do Espírito
no centro da História da Salvação.
Convém começar relançando um olhar afetuoso sobre o Livro
que o próprio Espírito nos dá como a história de Deus e a nossa história, como
realização do projeto amoroso de Deus. Lida em profundidade, a Bíblia é a
revelação progressiva do Amor de Deus, do Espírito de Amor. Ela é a educação do
amor, no amor, pelo amor. O maior
empenho há de ser portanto ler a Bíblia
no Espírito de Amor que a inspirou e que ilumina e aquece a leitura, para que
seja entendida do jeito e no sentido em que foi escrita.
O que se chama o
“Antigo Testamento” é de fato o 1º volume de um só Testamento. Apreendido em
sua totalidade e à luz da revelação definitiva, desde a primeira página, nele
reconhecemos a revelação do Espírito que vai se fazendo em um processo,por
vezes difícil, mas sempre maravilhoso e paciente. O Espírito assume os
acontecimentos, intervém nas pessoas, delas se apodera para conduzir os fiéis,
o povo, a história para Deus.
Há sem dúvida um
desenrolar de fatos e feitos, de palavras, de gestos, de momentos de serenidade
ou de violências, de conchavos e de guerras.Pela Aliança, Deus se prende à humanidade tal qual ela é. E entra na história do jeito que ela vem e vai se desdobrando. Esse realismo humano,
terrivelmente humano, da Bíblia, pode velar
a presença do Espírito, ocasionando o desconhecimento das etapas de preparação de sua revelação discreta e progressiva. No entanto
a compreensão dessa lenta e sábia pedagogia tem o seu lugar indispensável para
que se chegue realmente à plena aceitação do dom maravilhoso do Espírito, Amor
pessoal de Deus comunicando-se e revelando-se no Novo Testamento. “Veio a
plenitude dos tempos” (Gl 4,4: Rm 5,5). É o
Pléroma do Espírito, dado em abundância e levando tudo à perfeição.
Apontemos as grandes
balizas dessa caminhada ou dessa ascensão rumo ao encontro com o Espírito, sempre secretamente conduzida pelo mesmo
Espírito:
• Espírito criador, fonte de vida, animador do ser
humano.
No começo e na base de
tudo, contemplamos o Vento leve e fecundo, se fazendo reconhecer de modo
definitivo como Espírito criador das
coisas: qual águia amorosa esvoaçando sobre as águas, abraçando e fertilizando
as coisas (Gn 1,2). Nas línguas bíblicas, “espírito” designa o sopro em toda a
sua abrangência semântica: o ar, o vento, a brisa, a respiração, o hálito.
Daí, um segundo
sentido importante, fundamental em toda a Escritura: o Espírito é o Sopro
vital, vindo de Deus; alguns textos dizem: das narinas ou da boca de Deus,
para, juntamente com a Palavra, animar o ser humano, dele fazendo um vivente
(Gn 2, 7).
Há uma conexão
profunda e constante da “Palavra e do Sopro” divinos. Pela íntima convergência da palavra e do sopro, se descrevem as
relações de Deus com as criaturas, agindo nas profundezas delas como princípio
do ser, prenunciando a revelação da Palavra e do Espírito, como Pessoas divinas
no Novo Testamento. Bela síntese dessa mensagem constante vem a ser o refrão do
salmista:
Por sua
Palavra surgiram os céus
Do Sopro
de sua boa brotaram todas as estrelas
Salmo
33 (32), 6.
• Espírito: irrupção impetuosa e
surpreendente de Deus.
Para os oprimidos, os
deprimidos, no decorrer da história desponta o Espírito de coragem e de luta.
Anima os chefes, os líderes, os guerrilheiros, levando-os a salvar o povo,
tornando-os guias e juizes dos fracos e
abatidos. Essa forma de manifestação do Espírito é muito forte, e até
espetacular na história dos Juízes no livro do mesmo nome. Israel vive então
uma aventura meio parecida com as vicissitudes de movimentos como o MST. Um povo sem terra ocupa a terra e tem
que lutar para nela sobreviver. Na Bíblia, a terra se torna a base e a garantia
da Aliança.
Os chamados Juizes são
líderes guerreiros ou guerrilheiros, reconhecidos como mandatários de Deus,
porque defendem o povo e mantêm as condições da Aliança. Mas estão longe de ser
modelos de santidade. São tocados ou assumidos pelo Espírito de maneira pontual, episódica. É o que acontece com
Otoniel (Jz 3,10), Gedeão (Jz 6,34), Jefté (Jz 11, 29). O voto deste último e
seu cumprimento estão longe de ser ética e espiritualmente recomendáveis (Jz
11, 29ss). O mais típico e surpreendente é Sansão. O Juiz
ou o líder do povo se torna um guerrilheiro, faz proezas, em favor do
povo, mas seu comportamento ou suas idéias, de parceria com as de Dalila, não
têm nada da santidade e da perfeição que Deus comunicará um dia na plenitude
dos tempos, graças ao dom do Amor.
• Espírito do entusiasmo profético e o Espírito que falou
e agiu pelos Profetas.
Distinguem-se aqui
duas etapas ou duas modalidades de um fenômeno, que aparenta o êxtase ou o
transe. O primeiro que chamaríamos de “entusiasmo profético”, sob a ação do
“Espírito do Senhor” (1 Sm 10, 6, 10-12): é um estado de exaltação. atribuído à
ação do Espírito divino. O segundo, o “Espírito de profecia”, não apenas produz um entusiasmo e leva a
ações extraordinárias, mas manifesta os desígnios de Deus e transforma aquele
que é iluminado e guiado pelo Espírito, constituindo-o um orientador do povo e da história, levando-o
a falar e escrever sob inspiração
divina. É o Espírito de santidade, de justiça, de bondade, revelando-se e
agindo no íntimo do profeta, dele fazendo uma testemunha fiel da Palavra de Deus. É o sentido
verdadeiro e profundo da profecia como dom do Espírito no Antigo e no Novo
Testamento, e que perdura na Igreja. Essa diferença do fenômeno extático, entusiasta
e da profecia ; e um dado importante para nossa reflexão teológica.
Poderíamos destacar um
texto de síntese, mostrando um momento de
transição da pedagogia divina, conduzindo e apresentando a figura
maravilhosa do profeta Elias. Ele aparece ainda como um profeta sobre o qual o
Espírito cai de improviso e o transporta de maneira imprevisível (cf 1 R 18,12:
2 R 2, 16). Mas a ele Deus anuncia que seu Espírito não está no terremoto ou no
tufão mas na brisa suave (1 R 19, 11-12).
Essa transição
pedagógica se manifesta simultaneamente
no que toca aos chefes ou líderes carismáticos, do tipo de Sansão, e no que se
refere aos profetas entusiásticos. Os primeiros cedem o lugar aos reis, que o
Espírito de Deus vem iluminar e guiar, o que resplandece sobretudo na figura de
Davi; e os segundos, os grupos carismáticos de profetas, vão sendo relegados,
enquanto avultam os profetas fielmente dóceis ao Espírito. que terão um lugar
de relevo na história da salvação, como Isaías, Jeremias, Ezequiel.
• Espírito de justiça e santidade.
Já a partir de Gn 6,
3, aponta-se a incompatibilidade do Espírito e da corrupção. É um dado ético,
verdadeiro fio condutor da história da
salvação. Deus vem por sua Palavra e
pela força de seu Espírito, mas encontra
o obstáculo da corrupção, da violência, da opressão, da injustiça, do pecado,
do desamor.
Alguns textos mostram
a oposição radical entre o Espírito de Deus e o pecado, que habita o coração, a
cidade, a nação, o mundo. Assim, o oráculo do capitulo 1º de Isaías explode
como um relâmpago de protesto contra a corrupção das pessoas e do povo.Essa
mensagem de santidade e justiça prepara os caminhos da misericórdia. Que se
leia a mensagem de esperança transmitida em
Is 61, citado com ênfase no N. T. (Cf. Lc 4, 16-21):
O Espírito
do senhor repousa sobre mim,
Ele me
ungiu e enviou
Anunciar
aos pobres a boa nova
Proclamar
aos cativos a liberdade.
Uma
segunda série de textos vai mais longe: visa a acender a esperança do perdão,
da remissão dos pecados, sob as imagens mais fortes de uma purificação, de uma
renovação profunda. Os símbolos da água e do fogo são utilizados para nos
mostrar a totalidade e a radicalidade dessa purificação.
Derramarei
sobre vós água pura
E sereis
purificados.
Dar-vos-ei
um coração novo
Destilarei
dentro de vós
Um espírito
novo
(Ex 36, 26s; a comparar com Jr 31, 31s)
O Espírito se define
assim pelo primeiro de seus efeitos em nós: a
Remissão dos pecados. É muito significativa aproximação que se faz no
credo: “Creio no Espírito Santo, na santa
Igreja católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados”.
O Espírito é o
princípio da Igreja, sendo a fonte da comunhão dos santos e da remissão
dos pecados. Porque ele é o Amor. Dele vem a comunhão, o laço do amor. E dele
promana o perdão, a remissão dos pecados, que são diluídos, lavados pelo amor
ou fundidos no fogo do amor.
Para a compreensão da
revelação em sua perfeição evangélica é de importância primordial essa visão
dos pecados e da sua remissão pelo Amor, como é descrita de modo maravilhoso em
Ez 36, 26-27. Hoje, como em toda a
história do povo de Deus, a verdadeira fé
há se afirmar qual triunfo sobre
a falta de sentido do pecado e sobre a culpabilidade, o sentimento distorcido e
exagerado da culpa.
• Espírito de sabedoria
e suavidade.
No processo pedagógico
da Escritura, verifica-se o encontro e a identificação dos grandes dons
divinos: a sabedoria, a Palavra, a Lei,
e o Espírito. Esses são os grandes dons da Aliança e os caminhos que conduzem
ao encontro com Deus, à verdadeira felicidade de cada um e de todo o povo.Em
sua realização mais alta e plena, esses dons divinos são exaltados juntos e
como que identificados uns com os outros:
A Sabedoria se identifica com o Espírito. O Espírito, enviado por Deus,
será uma fonte de sabedoria, de ciência, de discernimento no culto de Deus, na
prática da justiça. Tal é a mensagem e a promessa dos profetas para os tempos
messiânicos, sintetizada em Is 11, sempre meditada pelo judaísmo e pelo
cristianismo.
• Espírito de vida e de ressurreição.
Em estilo
apocalíptico, o tema é desenvolvido pelo profeta Ezequiel (Ez 37, a comparar
com Ez 36, 26-27). Ele é retomado por
Daniel que lhe acentua ainda mais o caráter apocalíptico (cf Dn 12),
tornando-se um e outro referências para o Apocalipse cristão, seja nos
Discursos finais de Jesus nos evangelhos sinópticos seja no último livro da
Escritura atribuído a João.
A revelação perfeita no dom
evangélico do Espírito.
A plenitude evangélica
se define como a Nova Aliança, mais
ainda a Nova Criação e a Nova Humanidade
que nascem de Pentecostes. A “Nova criatura” que vem do Espírito, permanece no
Espírito, vive do Espírito e no Espírito. Está aí a mensagem pregada pelos
Apóstolos e sintetizada de maneira doutrinal e calorosa pela Carta aos Romanos
(especialmente, no c. 8).
No conjunto dos
Evangelhos, a vida de Jesus aparece como a revelação progressiva que nos leva a
confiar-nos ao Espírito Santo. O desenrolar dessa pedagogia parte da noção geral do Espírito de Deus,
inaugurada no Antigo Testamento, chegando
até à plena revelação do Espírito em sua relação com o Pai e o Filho: o
Espírito que nos conduz ao Pai pelo Filho. Ele
nos introduz na verdade total, fazendo-nos penetrar a verdade por
dentro.
• O Espírito é primeiramente manifestado em relação com a vinda de Jesus.
Assim, quando a Igreja
apostólica, já plenamente iluminada pela fé, se volta a refletir sobre as
origens de Cristo, encontra esta resposta: “Jesus foi concebido pelo poder do
Espírito Santo” (Mt 1, 18 e 20; Lc 1, 35).
E a ação do Espírito se mostra com certa ênfase em todas as personagens ligadas ao nascimento
de Jesus; de tal forma que esse nascimento aparece como o ponto de chegada do
Antigo Testamento e o começo da plena originalidade divina da Nova Aliança, em
que predominam a presença e a ação do Espírito.
•O Espírito e o advento do Reino de Deus.
O Evangelho de Lucas
realça muito especialmente a presença e a ação constantes do Espírito na vida
de Jesus. Em Lc 4, 1, 14, 18, se mostra o Espírito Santo no início da atividade
salvadora do Ungido de Deus. E o conjunto dos evangelistas salienta a ação especial do Espírito nos grandes
momentos da vida de Jesus (batismo, transfiguração, momentos de oração). E o
Espírito é prometido, ele está como no horizonte, predito e garantido como a
força divina que levará a pregação da Igreja ao seu pleno êxito (Mt 10, 20: Lc
12, 2). É significativa a formulação da promessa no final de Lucas que é como a
transição para o seu outro livro, os Atos
dos Apóstolos:
“Eu vos mandarei o que o meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na
Cidade até que sejais revestidos da Força do alto” (Lc 24, 49).
• O Espírito no
Evangelho de João.
O Espírito, o dom do
Espírito e a docilidade ao Espírito, realizam a
glorificação de Cristo em sua humanidade e em toda a humanidade. Na
primeira parte do IV Evangelho, em que Cristo, o Filho fala ao mundo,
encontram-se indicações dessa plena
realização dos desígnios do Pai: Jo 1, 33: 3,5-8. Mas sobretudo em Jo 7, 37-39:
Torrentes de água viva jorrarão do Cristo e dos seus discípulos; tal é a promessa. E o Evangelista ajunta: “Pois
ainda não havia o Espírito, porque Jesus não tinha sido ainda glorificado”;
isto é, o dom de Pentecostes, ainda não
se havia realizado.
Na segunda parte do IV
Evangelho, Jesus está com “os seus” e
fala confidencialmente com eles (Jo 13-17). Aí, a promessa e a doutrina do
Espírito estão no centro da mensagem. Os grandes textos joaninos iluminarão a
vida da Igreja, os debates e os ensinos dogmáticos dos grandes concílios, desde
o Concílio de Nicéia em 325. Eles serão a fonte da oração, da meditação e da
contemplação dos mestres espirituais e dos místicos em toda a história da
Igreja.
· O
“Quinto Evangelho”, o Evangelho do Espírito, os Atos dos Apóstolos.
O primeiro texto de
base vem a ser At 1, 2-8. É o resumo da promessa que sintetiza os evangelhos. A
narração que funda e esclarece todo o
“Evangelho do Espírito” se encontra no capítulo 2º dos Atos. Aí se descreve o dom de Pentecostes coroando a obra de
Cristo e inaugurando a marcha da Igreja, cujo modelo de perfeita docilidade ao
Espírito é descrito com visível complacência.
A implantação e a
difusão da igreja, a primeira evangelização exemplar para todos os tempos, se
fazem a partir sempre de pessoas e comunidades repletas do Espírito Santo,
irradiando graça, no sentido humano e divino, fazendo confiança ao outro, ao
destinatário da boa nova e merecendo sua estima e simpatia.
O recém-convertido
vira apóstolo, na medida da plenitude do
Espírito que recebe e da aprovação da comunidade que passa a acolher, sem
consideração de antigüidade ou de qualquer outro critério. A Igreja é uma
comunidade ou uma rede de comunidades, sua vida é deveras a comunhão, a
participação e a partilha. A Igreja saiu assim das mãos de Cristo e do sopro de
Pentecostes.
Como Jesus nos Evangelhos, assim o Espírito Santo é o
protagonista, o primeiro ator na narração dos Atos dos Apóstolos. Há um
prólogo: Jesus não é mais visível. Espera-se que o Espírito assuma a orientação
dos agentes e dos acontecimentos. É o capítulo 1º. No Capítulo 2º, no dia de
Pentecostes (no coroamento da Semana das semanas, ou no termo das sete
semanas), o Espírito vem. Tudo começa. Ele vai constituir, animar e guiar a
comunidade em sua missão evangelizadora.
Imagens, símbolos, eventos.
Revelando-nos Deus e
as coisas de Deus, sem revelar seu próprio Rosto, o Espírito se manifesta em
uma multiplicidade de sinais que havemos de discernir com seu próprio auxílio
interior. Imagens, símbolos, eventos, efeitos produzidos no mundo e no ser
humano constituem uma primeira rede de indicadores que apontam para a realidade
misteriosa e para os atributos do Espírito. Ele permanece inacessível, fugindo
a qualquer representação que falasse dele de maneira exclusiva ou mediante
traços plenamente distintivos.
Mas Ele mesmo nos
convida e conduz a assumir todos esses sinais, a transpor seus limites, a
apoiar-nos em cada um e no conjunto de
todos eles para chegarmos a uma percepção fina e amorosa do Que é e de Quem é o
Espírito, vislumbrando com segurança a Realidade, o Mistério, a Pessoa divina
do Espírito.
As figuras ou as
imagens que nas teofanias bíblicas encaminham-nos ao conhecimento do Espírito
visam sugerir o íntimo de Deus, o que há ou é
mais próprio de Deus, em seu ser, em seu agir soberano, suave e eficaz.
Assumem-se formas ou fontes de energias, para ajudar-nos a fazer-nos uma idéia
de Deus enquanto Princípio primeiro de energia, de vida e de ação profunda. Aí
descobrimos um desígnio: mostrar a
universalidade, a perfeição, a intimidade no ser, na presença e na ação
do Espírito.
Na história,
destacamos o conjunto das ações e dos acontecimentos cujo tecido constitui a
revelação e o dom do Espírito. Tudo é
visto e descrito do modo mais profundo,
como ações que estabelecem relações de Deus conosco; e até como uma comunhão da
vida, do conhecimento e do amor realizando-se no próprio Deus.
Os símbolos são
tomados aos elementos mais gerais, mais
envolventes e dinâmicos: o ar, a água, o fogo. A eles se acrescenta o óleo, a
unção e outros, para designar a doçura e a profundidade da ação do Espírito.
São representações e símbolos que sugerem a intimidade, a força, a eficácia, o
caráter renovador da presença de Deus. Essa linguagem simbólica tem um ritmo
progressivo. Ela revela sentidos cada vez mais profundos, em respostas às
aspirações e situações do Povo de Deus. A liturgia mais antiga e sempre
atraente nos convida a saborear umas amostras
dos símbolos da água, do fogo, da refeição, da noite, da marcha, na celebração da vigília pascal.
Consideremos esses
símbolos e alguns textos bíblicos, colocando
sua mensagem em relação com nossa vida dentro do mundo de hoje, tão
atento às experiências dos símbolos, e muito propenso ao uso e abuso do
imaginário e da afetividade.
Eis o símbolo primordial
do Espírito (etimologicamente ligado ao seu nome): o ar, o ar em movimento e
princípio de movimento, vento, tufão, brisa; o ar, fonte de vida, sopro, respiração. O sopro insinua a fonte de onde
vêm a vida e a convivência. O ar circula renovando; o cosmo, a vida, a mente.
Assim, a primeira
imagem que faz corpo com o nome mesmo de “Espírito” – nas várias línguas da
Bíblia e da tradição cristã – é o
“Sopro”: o “Vento” no universo ou o
“Sopro da vida”, sopro que faz viver, que faz o vivente, sopro que comunica a
vida. No limiar da Bíblia, o primeiro homem recebe de Deus o “Sopro”
(“Espírito”) que o faz viver, tornando uma “criatura vivente” (cf. Gn 2, 7). E,
na aurora da Nova Aliança, Cristo
ressuscitado, para fazer surgir a nova criação, a nova humanidade, sopra sobre
a sua comunidade dizendo: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20, 22).
Aqui, o gesto e a
imagem se irmanam à palavra, de modo que o Espírito – Sopro é dado e revelado.
O Espírito é fonte de vida, de vida no íntimo do ser humano que participa da
vida íntima de Deus.
Algo de semelhante se
passa em Pentecostes (At 2, 1 - 4),
quando o Espírito vem do alto, sob a forma e a imagem de Vento impetuoso, de um
fogo cujas labaredas são línguas brandas e luminosas, envolvendo a todos juntos
e pousando suavemente sobre cada um em particular.
Essa teofania, essa
manifestação divina do Espírito, recorrendo a imagens comuns e tradicionais, põe em relevo a força
poderosa de Deus (vento impetuoso), a ação profunda, íntima, transformadora
(línguas de fogo), criando novos seres humanos que passam a comunicar e a
transmitir a Palavra da vida. As chamas Insinuam uma ação mais forte do que a
da água: daí o contraste do batismo de
água e do batismo de fogo em At 1, 8. Com efeito, na Bíblia, especialmente nos Profetas (por
exemplo, Ez 36, 25 – 27), a água é o outro elemento associado ao fogo para
simbolizar o Espírito como fonte de purificação e como fecundidade, como
princípio de vida. No Novo Testamento a promessa desse batismo – na água e no
fogo - se mostra realizada no dom do Espírito que é “derramado em nossos
corações”. (Cf. Rm 5,5).
Merece atenção o fato
de que os abalos, os tremores de terra, acompanhamentos clássicos das
teofanias; têm aparições discretas nas cenas de Pentecostes. Visam apenas exprimir
a novidade e a originalidade da intervenção divina, a ruptura da Antiga e o
começo da Nova Aliança.
Merecem ainda relevo o
óleo, a unção, indicando ação suave e profunda, como se diz em 1 Jo 2,20,27: 2 Cor, 1,21
Outro símbolo
discreto, mas que teve a maior fortuna na pintura é a pomba. Uma ave tem o privilégio de dar uma certa figuração
assinalando a presença do Espírito. Aqui está alguém em quem permanece o Espírito
de Deus: Jo, 1,32-34. Com a luz e a nuvem, a pomba é a sinalização do bem amado
no Batismo de Cristo no Jordão (Mt 3,16 e paralelos).
Há hoje um grande
interesse e uma modernização dos símbolos. É uma das marcas da Nova Era. Ela se
caracteriza pela exaltação e utilização
de energias nos diferentes elementos. Daí, o risco de ambigüidade: apego aos
valores psicológicos e sugestivos dessas energias, com o esquecimento ou o
anonimato de Deus, e mais ainda de seu Espírito de Amor.
Nossa atitude cristã
será: atualizar os símbolos bíblicos dentro da
visão moderna do cosmos, em que emergem ou se presumem energias, ondas,
programas inscritos na realidade, e que conduzem o universo das coisas, da
vida, do espírito. Os símbolos podem
servir de base em nossa marcha
para o Espírito criador e santificador. Mas, não se há de parar neles.
Devem guardar a transparência. Se não, acabam resvalando na superstição
ou na idolatria.
Nomes e propriedades do Espírito.
Tão ou mais importante será assinalar e compreender
os nomes com que se designa o Espírito Santo. Esses nomes são propriedades ou
atributos de Deus, que se revela na sua perfeição. Exprimem também as
qualidades dos homens e mulheres chamados a serem filhos e filhas de Deus. São
portanto escolhidos entre as perfeições
e os valores mais altos a que se possa aspirar na busca da vida espiritual: Verdade, Amor, Liberdade,
Vida.
“Espírito”, cujo
nome deriva do que parece o mais subtil
dos elementos; o ar, o vento, o sopro vital, designa o que há de mais íntimo em
Deus (1 Cor 2, 10-11): sua força secreta e eficaz, a energia renovadora,
inovadora e divinizadora. O primeiro nome
será o Espírito Santo, Deus acima de todo o nosso modo de ser, de agir,
de pensar e até de fazer o bem, mas vindo por bondade e nos santificando,
tornando-os semelhantes e unidos a Deus pelo Amor.
Convém destacar os nomes: Espírito de verdade, de santidade,
de amor, de liberdade, de força, de vida, de ressurreição, de reconciliação, de
comunhão, de remissão dos pecados, de
filiação divina, com um realce para o Defensor (Paráclito). Esses nomes apontam
para todas as perfeições e propriedades
de nosso ser, de nossa vida, vindo de Deus e nos conduzindo a Deus. Coroando e
como que explicando todas essas denominações, emerge a realidade primordial: o
Espírito de Deus, Espírito do Pai, do Filho.
No estudo dos símbolos
e nomes dados ao Espírito, a Deus e a seus mistérios, a linguagem joanina
merece uma atenção especial por sua riqueza, sua originalidade e profundeza.
Ela parte do que é o mais comum em nossas relações e conversas cotidianas. Ser, nascer, conhecer, amar,
estar em, permanecer, dar, vir ou proceder de, enviar (missão), comunhão,
verdade, vida, luz, paz, alegria. Mas essa linguagem é inserida em um contexto
ao mesmo tempo afetivo, espiritual e que favorece uma elevação do sentido intelectual e vivencial das palavras.
Assim todo essas
noções são levadas ao mais alto grau de
perfeição e fineza para exprimir as nossas relações com Deus e até mesmo a
comunhão de vida reconhecida como sendo a intimidade do próprio Deus.
· Um primeiro nome: “Espírito
de Deus”.
Após as imagens e
símbolos, vamos meditar os nomes que visam dar-nos uma noção, uma espécie de
definição do Espírito.
O primeiro, o mais
geral e comum é precisamente “Espírito de Deus”. Essa expressão faz uma espécie
de transição entre o Antigo e o Novo Testamento. O Espírito designa Deus mesmo,
agindo de maneira propriamente divina, com o poder eficaz e íntimo de Deus. Mas
se diz Deus “envia”, “dá” o seu Espírito, promete uma efusão de seu Espírito
como dom por excelência dos tempos
messiânicos. Assim, os Profetas preparam a plena revelação do Dom pessoal do
Espírito e da revelação da comunhão íntima e eterna do Pai, do Filho e do
Espírito Santo.
O Apóstolo Paulo nos
dá uma bela doutrina sobre o Espírito de Deus em analogia com o Espírito
humano,em um texto que merece meditação: I Cor 2, 10 – 11.
Certos trechos do Novo
Testamento guardam o sentido abrangente, profético e evangélico, do “Espírito
de Deus”, sendo suscetíveis de uma leitura compreensível já para os judeus e
desvendando um sentido pleno para os cristãos. Assim no Evangelho da Infância:
Jesus “concebido pela ação do Espírito Santo” (cf. Mt, 1, 20; Lc 1, 35); o
“Espírito Santo sobre Jesus.” (Lc 4, 18).
· “Espírito
de Cristo”, “Espírito do Pai e do Filho”.
É como “Espírito de
Cristo”, prometido e enviado por Ele, que o Espírito é primeiramente revelado
como Pessoa divina. Ele tem a missão de levar à perfeição a obra realizada por
Cristo. Estando e agindo em Cristo, Ele é designado como “um outro Consolador”
(cf. Jo 14, 16; 14, 26; 16, 13 – 15). Será aquele que manterá a saudade e a presença – ativa e invisível - de
Cristo após sua partida para “junto do Pai”.
O Espírito inaugura a
nova forma de verdadeira presença de Cristo, em uma identificação interior com
cada discípulo e com a comunidade. É a presença salvadora, que comemora a
presença visível, histórica do Cristo, fazendo de sua vida, de seu ministério,
de sua morte e ressurreição a fonte de vida e de renovação para a humanidade.
O Espírito está
presente e ativo na Palavra, no próximo, na comunidade, nos sacramentos, nos
pastores e líderes, tornando presentes o Cristo, o Pai e o Filho nessas
realidades do dia-a-dia.
Sem o Espírito, sem
seu influxo e sem a docilidade em acolhê-lo, todos esses dons podem tornar-se
opacos, nos fechariam em nós mesmos ou nos limites da criatura.
Em um nível de maior
profundidade, os mais belos textos do Novo Testamento nos ensinam que Ele é o Espírito do Pai e do Filho: Espírito
do Filho que leva ao Pai; o Espírito do Pai que leva ao Filho.
· “Espírito
de Verdade, Amor e Liberdade”
Verdade, Amor,
Liberdade são atributos divinos revelados no Espírito e que, mediante o dom que
Ele nos fará, se tornam qualidades dos fiéis, dos “espirituais”, dos habitados
e transformados pelo Espírito.
- Espírito de Verdade:
Ele é a Verdade e nos introduz na verdade, na sabedoria, no discernimento,
abrindo-nos os olhos da inteligência e do coração para vermos as coisas em Deus
e segundo Deus, o que significa na sua realidade profunda.
- Há um nexo íntimo e
forte entre a Verdade, o Amor e a Liberdade, de que o Espírito é a fonte para
nós. A Verdade primordial é Deus se
revelando e se dando como Amor e fonte de amor. A liberdade é a capacidade de
amar plenamente, de viver e agir no amor e pelo amor.
Tal é coração da
doutrina evangélica condensada em Jo 14-16 e Rm 8.
·“Espírito de filiação e de
oração”.
Nas mesmas fontes
joaninas e paulinas, encontramos a
insistência encarecida sobre o Espírito princípio de nossa filiação divina e
como mestre único da oração.
Note-se esse nexo
vital estabelecido pelo Evangelho entre a verdadeira oração e a nossa filiação
divina. Jesus nos ensina a rezar como ele, dando-nos a oração do Pai Nosso (Lc
11, 1 – 4; Mt 6, 9 – 13).
E só aprendemos e
podemos invocar Deus como Pai, em
virtude do Espírito de filiação divina que nos é dado e nos dá a possibilidade
de orar como filhos (Cf. Rm 8, 14 – 18; 26 - 27; Gl 4, 4 – 7).
·“Espírito, Dom e fonte de
Comunhão”
A comunhão é o fruto
todo especial da presença do Espírito. Ele é laço de amor: está no íntimo de
cada um, não para fechar as pessoas em si mesmas ou no sabor da presença
divina, mas para tecer a união profunda,
o encontro das consciências na mesma verdade e no mesmo dom de si.
O Espírito Santo é o
mistério, a realidade do Dom perfeito do Amor perfeito, o Dom gratuito, sem
interesse próprio. Comunicando-se às pessoas, aos casais, às famílias e às comunidades, Ele é a fonte desse
amor e desse vínculo de amor
desinteressado e, portanto, da perfeita comunhão.
Assim o Espírito é
como a “alma da Igreja”, constituindo-a como a perfeita comunhão de Amor. Tal é a essência da Igreja,
que faz dela mais do que uma sociedade de índole religiosa, contando com a
assistência do Espírito Santo. Sem dúvida é importante a assistência prometida
aos Pastores da Igreja. Mas essa mesma assistência visa algo de maior, a
própria vida da Igreja no Espírito,dela
fazendo mediadora da graça da fraternidade universal.
O Espírito que, nas
origens do mundo, é representado como
pairando sobre as águas para fecundá-las (cf.
Gn 1, 2) é enviado, na “plenitude dos tempos”, qual Espírito criador. No
Símbolo dos Concílios que explica o Símbolo dos Apóstolos, professamos que o
“Espírito Santo é Senhor e Fonte da Vida”. Ele é a força interior que vem do
Pai e do Verbo, para realizar plenamente a
perfeição da criação, do reino da vida em todos os planos do universo
visível e do mistério da participação da Comunhão divina.
Assim se
manifesta o que é o Espírito para nós, para a Igreja, para
o mundo.
Papel primordial do Espírito na
vida Igreja e dos fiéis.
A Nova Aliança surge e
se desenrola a partir do 1º Pentecostes e de uma série de novos pentecostes. A
difusão da Igreja é a propagação da Verdade divina, pela força e a graça do
Espírito. Há um grande processo de transmissão de certeza e de convicção. A
fonte primeira dessa convicção é a palavra dos Apóstolos, apoiada pela
energia e pelos sinais do Espírito. Ela é confirmada pelo testemunho da vida
das pessoas e comunidades animadas por uma experiência da presença e da ação do mesmo Espírito. Da parte dos
Apóstolos, dos seus colaboradores e das comunidades, resplandece uma confiança
nos convertidos. Nestes se reconhecem a graça e os carismas do Espírito, que os
tornam capazes de se tornar imediatamente pregadores, líderes, fundadores de
comunidades.
O ter recebido o
Espírito Santo, dele e nele viver, é o essencial, é o elemento constitutivo da
identidade dos fiéis e das comunidades.A questão: “Receberam o Espírito Santo”?
é típica desse critério fundamental. Os que não receberam e não vivem do
Espírito Santo não pertencem a Cristo e à sua Igreja (Cf At 19, 1 ss; Rm 8,9).
Destaquem-se alguns
indícios desse papel primordial do Espírito na vida da Igreja:
· O Espírito envia os missionários, que
são ao mesmo tempo os mandatários das comunidades. Estas rezam e jejuam, buscam
ser dóceis á ação do Espírito, a qual é discernida e seguida em um clima de
oração e de dom de si (Cf. At 13, 2 – 3). Os missionários partem entregues à
graça do Espírito.
· “O Espírito não deixou que eles
anunciassem a Palavra na Ásia.” (At 16, 7). Semelhante expressão põe em relevo
a total docilidade e a total dependência dos Apóstolos em relação ao Espírito
que guiava a evangelização. Tudo indica que os missionários têm um
discernimento muito fino, enraizado na afinidade que os identifica com o plano
de Deus.
· “Nós e o Espírito Santo decidimos” (At 15, 28) Está aí uma
outra palavra bem significativa. Sem dúvida, a Igreja apostólica não vivia sem
problemas. Muito pelo contrário, não faltavam incertezas, conflitos e riscos de
dissensões. Mas o que a caracteriza era o clima de diálogo, de consulta, de
comunhão, na oração, na busca da plena docilidade ao Espírito. Assim, quando
tomavam uma decisão podiam atribuí-la à
comunidade e ao Espírito Santo.
Em que consiste a ação do
Espírito?
A questão é decisiva
para a compreensão da mensagem e da vida da Igreja primitiva e da Igreja hoje. Descrevem-se alguns fenômenos mais ou
menos freqüentes que são os sinais aparentes de um dado permanente e profundo.
Os fenômenos são ligados aos traços habituais de teofanias ou manifestações de
Deus ou de algo de divino, na Bíblia ou mesmo fora dela, nas religiões
entusiastas, por exemplo. A realidade profunda e permanente é algo absolutamente
original, é o começo, a irrupção de uma vida nova, um conhecimento do mistério
do Cristo, à luz das Escrituras e do Plano divino da salvação. Daí a
compreensão de que Deus nos salva em seu
Filho e nele tudo nos dá e tudo nos pede. A presença do Reino se concretiza no
modelo jovial e edificante da vida das comunidades após receberem o dom de
Pentecostes. O povo maravilhado verifica
que as promessas começam a se realizar na Igreja da Nova Aliança.
Pode-se confirmar a
narração dos Atos pelas indicações de
Paulo, tanto mais sugestivas quanto são alusivas às atitudes e
convicções de que vivem seus destinatários (Cf. Gl 3,1 ss). Vê-se que, na
Igreja apostólica, a vida dos discípulos começa com a experiência de “receber o
Espírito”, normalmente após um período de instrução e pelo batismo acompanhado
da “imposição das mãos” (feita pelos Apóstolos ou seus colaboradores).É projeto
anunciado inicialmente em Atos 2, 28, e realizado nas narrações seguintes.
· Em síntese: A nova Aliança, a novidade
do Evangelho é ser, viver, ver, pensar,
sentir, agir “no Espírito.” Tal é o essencial da mensagem do Apóstolo Paulo.
· Há uma linha divisória, um antes e um
depois: “Vocês receberam o Espírito” (Gl 3, 2,
5). E um grande princípio ou critério decisivo: “Quem não tem o Espírito
de Cristo não pertence a Cristo” (Rm 8, 9). “Só os que são animados pelo Espírito são filhos de
Deus”. “O próprio Espírito se junta a nosso espírito para testemunhar que somos
filhos de Deus” (Rm 8, 16).
·
É muito sugestiva essa
aproximação do nosso “espírito” e do “Espírito de Deus”. Pois o próprio Paulo
explica: “Quem conhece o que há no homem senão o espírito do homem que nele está? Assim também as coisas de Deus, ninguém as
conhece senão o Espírito de Deus” (1 Cor 2, 11).
· De Paulo e de João vem a descrição
desses atributos do Espírito, os quais constituem as propriedades, as energias
e o dinamismo da vida cristã. Verdade,
Liberdade, Amor, Filiação, Paz, Alegria. Tais são os grandes fachos de luz,
clareando o caminho da primeira “nova
era do Espírito”, pregada pelos Apóstolos desde Pentecostes. Bom seria que a humanidade tenha dela a mais viva e forte
compreensão e uma imensa nostalgia.
De maneira, sem
dúvida, original, a mensagem de Paulo se
encontra ainda aqui com a doutrina joanina: O Espírito Santo nos é dado para
que sejamos de Cristo, para que o conheçamos em toda a verdade, para que nos
conformemos a Cristo.
O encontro com Cristo
seria puramente exterior, Paulo diz: “segundo a carne” (cf. 2 Cor 5, 16), se o
Espírito de Cristo não interioriza em nós a palavra, o amor, a presença de
Cristo. Mas, o Espírito de Cristo é o Espírito do Pai e do Filho, é o amor que
os une. Por isso, o dom do Espírito nos conforma ao Filho, nos faz filhos e
filhas adotivos de Deus, reconhecendo e invocando o Pai, à semelhança e na
intimidade do Filho.
Somos incitados a
olhar para esses dados que nos revelam nossa verdadeira identidade cristã: “Não
é de Cristo, quem não tem o Espírito de Cristo”. ”São filhos de Deus somente os
que são conduzidos pelo Espírito de Deus” (cf Rm 8, 9, 12s).
O ensino do Apóstolo
supõe essa experiência pessoal e comunitária do dom, da recepção e da ação do
Espírito.
Mais ainda, fica estabelecida com toda clareza a equivalência entre estes programas de vida:
“estar, viver no Espírito,” “na caridade”, e “estar, viver no Senhor”, “em Cristo”. Tal é a verdadeira identidade do cristão que aceita
a plena verdade de Deus no Novo Testamento.
Muito especialmente,
“conhecer no Espírito” é ter acesso à Verdade. Mesmo Cristo tem que ser
conhecido no Espírito. Não basta conhecê-lo de um modo natural (como aqueles
que o freqüentaram, com ele conviveram) ou ser informado pelas testemunhas ou
pela letra do Evangelho.
A pregação de Paulo
visa levar a esse conhecimento e a essa vida, iluminados pela Verdade de Deus.
Por isso essa pregação não se funda na habilidade, na competência ou técnicas
humanas mas no “poder do Espírito”. É a grande e insistente proclamação do
Apóstolo em 1 Cor 1,18-2,15. Só o Espírito nos introduz na Verdade, faz com que
a palavra anunciada e ouvida seja para nós Palavra viva de Deus.
Há um acordo profundo
da mensagem de João com o testemunho dos
Atos, mas sobretudo com a doutrina paulina.
É para nos introduzir
no pleno conhecimento de Deus que Jesus
promete enviar-nos o Espírito da Verdade. “É Ele o Espírito de Verdade
que o mundo é incapaz de receber”... “Ele nos conduzirá á plena Verdade”...
“Ele nos ensinará todas as coisas e nos relembrará tudo o que Jesus nos
ensinou”. A leitura atenta da seção: Jo 14-16 nos desvenda toda uma
doutrina e uma espiritualidade, cujo centro e cuja inspiração é a Verdade do
Espírito.
- O Espírito é a
Verdade, na sua acepção objetiva: é a Realidade
de Deus, de seu Amor, de seu plano misericordioso, vindo a nós, para que
estejamos e permaneçamos na Verdade.
- O Espírito é a Verdade em nós, dando-nos a capacidade de
aderir ao que nos é revelado e a entrar na intimidade com o Pai, na Comunhão
trinitária.
É importante
compreender como Cristo é a Verdade e como o Espírito é a Verdade.
- Cristo é o Rosto, a
Imagem divina que a nós se mostra, fala, age, sendo uma mensagem viva de Deus
em sua bondade de Pai.
- O Espírito é intimidade amorosa do Pai e do Filho se
interiorizando em nós.
Tanto a mensagem
Paulina quanto a joanina encontraram a mentalidade e a pretensão dos gnósticos,
que exaltam a inteligência e o conhecimento como fontes únicas da salvação.A
esse desvio insinuante, eles opõem a Fé que se torna eficaz e salvadora pelo
amor (cf Gl 5,6).
Uma espécie de “nova
gnose” é hoje uma ameaça dentro e fora da Igreja, o que dá uma grande atualidade aos
ensinamentos de S. Paulo e de S. João.
Com o Novo Testamento,
especialmente em suas tradições joaninas e Paulinas, havemos de insistir em
dois princípios ou critérios essenciais: O conhecimento só tem verdadeiro valor
espiritual se brota do amor e leva ao amor.O conhecimento só nos conduz a Deus
que é Amor, quando acolhido na docilidade ao Espírito de Amor (não como uma
conquista pretensiosa de nosso saber) e nos conduz nesse Amor à comunhão com
Deus e com nossos irmãos.
Como acolher o Espírito?
Nosso ponto de
partida, nossa inspiração é sempre esta:
Como o Espírito se revela? Ele mesmo nos ensina a reconhecê-lo e a acolhê-lo
como Ele vem: na força e na suavidade do Amor.
O Espírito tudo revela
mantendo-se como que humildemente velado
Ele
revela Deus em sua profundidade divina, revela a realidade e o sentido de tudo
em Deus, revela-se Deus por sua luz e sua força divinas, mas não manifesta seu
Rosto de pessoa divina.
Jesus, o Filho único
de Deus, o Verbo Eterno e Incriado, entrou em nossa história, assumiu nossa
natureza, nosso jeito de ser, de agir, de sorrir, de chorar e até de morrer.
Nós o adoramos como Senhor, mas também o vemos como um irmão nosso. Mesmo na
glória, mostra-nos suas chagas. E o Filho nos dá e se declara a imagem do Pai:
“Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Por essa semelhança filial, somos ajudados a
dar uma figura concreta à Pessoa do Pai, embora saibamos que ela excede toda
representação e toda idéia que dela esboçamos com os olhos e o enleio de nosso
coração.
O Espírito é o segredo
de Deus que nos atrai e nos escapa. Habita em nós, está em nosso espírito, pelo
qual nos conhecemos, - mas não nos é
dado vê-lo diretamente nem mesmo como
contemplamos nosso rosto
refletido no espelho. Como nosso
espírito, o Espírito divino faz ver sem
ser visto. É a luz suave na
perfeita transparência, estabelecendo-nos também na humilde transparência, dando-nos o gosto e a busca da
verdade. Guia-nos a olhar para a realidade, para o outro, para Deus, sem apego
a nós mesmos, introduzindo-nos – se formos dóceis, - na noite escura e ditosa
da amorosa contemplação divina.
Ele se revela como um
Amor sempre escondido e se dando no escondido e em tudo de nossa vida. Dando-se
e revelando-se no tempo, na história, no rosto das pessoas, dos homens e das
mulheres. Dando-se e revelando-se segundo as necessidades e as capacidades,
suscitando, ampliando e aprofundando as aspirações, os desejos, as possibilidades
interiores e comunitárias para a acolhida de Deus que vem no seu Amor.
O Espírito é a luz e a
energia ativas da pedagogia divina, iluminando, amoldando e guiando, de dentro,
do interior, a história do povo de Deus e de toda a humanidade.
Havemos de compreender
com a inteligência e com o coração a acolhida que daremos ao Espírito:
Descobrir e seguir os
seus caminhos, suas etapas e formas
amorosas de vir a nós, sua linguagem própria, tecida de símbolos que indicam
traços do rosto de Deus e indicam as profundezas do coração divino. Essa
linguagem se enraíza na história e
caminha com a história, adaptando-se às etapas e progredindo com elas,
revelando sentidos cada vez mais profundos.
De si, seus carismas ,
seus dons nos encaminham ao Dom que é o
próprio Espírito,na medida em que entramos pelo caminho da doação de nós
mesmos. Mas o apego, a recusa de nos dar
retardam a marcha e podem até
tornar os dons ambíguos. Seja porque a eles nos prendemos; seja porque
preferimos os que mais nos agradam, os que mais nos valorizam aos nossos
olhos, sem visar ao dom mais excelente,
o puro amor desinteressado (1 Cor 14, 1).
A reflexão teológica
alimentada pela leitura da mensagem bíblica nos encaminha ao momento decisivo,
à opção pelo essencial, pela Verdade, pelo
Dom e pelo Amor que vem de Deus, que é o próprio Deus .
Pentecostes, a Graça e os carismas do Espírito.
A originalidade do cristianismo, que refulge particularmente em suas
nascentes evangélicas, é a constante confluência da Palavra e do Dom do Espírito.[1] O
Espírito acende e atiça o fervor, mas vem acompanhado de uma inteligência que
busca a compreensão e a expressão dos fatos de hoje à luz de uma Palavra que
vem de ontem, e que remonta às origens. Ela ilumina os problemas de agora, tudo
à luz de um Princípio e de um Fim da história, do sentido definitivo que
brota do Amor que nos salva.
Paulo se apresenta, fala e age como o homem da Palavra e do Espírito. E
tem mesmo a plena consciência de ser como um “possuído do Espírito”, pois “só é
de Cristo quem age movido pelo Espírito” (Rm 8,11). Ele testemunha que o
Espírito, não só é o único que “nos
ensina a rezar”, mas que Ele mesmo “intercede em nós com gemidos que palavra
alguma pode interpretar’ (Rm 8, 20). Por outro lado, sua pregação apostólica é
a” Palavra na força do Espírito “(1Cor 2, 1-5)”.
Paulo nos dá o ensino definitivo sobre os dons e carismas do Espírito.
Ele se baseia na experiência vivida, sua e das comunidades. E profere uma
Palavra, consciente de se enraizar nessa experiência quente de Pentecostes e na
corrente tranqüila de uma tradição que vem dos profetas e do próprio Senhor
Jesus Cristo.
Os
dons são múltiplos e ordenados segundo uma hierarquia. Esta se estabelece de acordo com a aproximação ou afinidade dos
diversos dons com o próprio Dom divino. Devemos, portanto, acolhê-los e vivê-los na sua totalidade e na
sua ordem divina.
Na linguagem catequética, inaugurada pelo Apóstolo Paulo, e
aperfeiçoada no ensino da Igreja,
distinguimos: os carismas, a graça santificante e todo o cortejo das graças
atuais, as virtudes teologais, os sete
dons que aperfeiçoam as virtudes. Os
dons para os quais se guardou o nome grego de “carismas”, não visam diretamente
santificar-nos mas capacitar-nos para bem servir o outro e a comunidade. Todo
esse cortejo de dons leva-nos ao próprio Dom pessoal do Espírito. Nenhum desses
dons pode ser negligenciado ou descurado. Mas havemos de aceitá-los todos na
ação de graças e desenvolvê-los na ordem em que nos são dados. Deus nos conduz
a Deus de modo divino, no Amor.
O facho de luz que recebemos do Apóstolo é essa proclamação humilde e
audaciosa: ser cristão é discernir no Espírito os dons, os carismas do
Espírito. Haja entusiasmo no louvor. Haja êxtase e raptos na oração pessoal ou
comunitária. Mas, guarde-se o critério dos critérios: o Espírito é o Deus do
Amor que leva ao amor humilde, serviçal, edificador da comunidade (1 Cor
12,31-14,1), é o Deus da ordem e não da confusão (1Cor 14, 33, 40). Não
perturba a sua criatura nem a sua comunidade. Entre emoções, vibrações e
entusiasmos de fervor, surge e domina a Palavra que dá o sentido e indica os
caminhos que levam para Deus e a colaboração com seu plano de Amor, e mantém o
nosso culto como racional e tranqüilo.
E aqui chegamos ao essencial. Paulo intervém e escreve não é
primeiramente para exaltar os carismas, sobretudo os mais vistosos. Ele surge,
claro e firme, para mostrar como utilizar os carismas. Ele afirma uma ordem
entre eles e estabelece uma prioridade. Os dons devem ser acolhidos na ação de
graças e orientados para o Dom. E este Dom é o Amor. Não um amor qualquer ou
tal como um qualquer o pode definir do seu jeito. O Amor tem um nome escolhido
pela comunidade apostólica para bem o distinguir : é a Caridade (agape, em grego). “A Caridade que é
difundida em nossos corações pelo Espírito que nos é dado” (Rm 5, 5). A
Caridade é descrita e cantada em uma série de gestos e traços bem simples, mas
inconfundíveis. Quem sabe conseguiríamos colher
em uma definição singela este jorro incandescente, que é o capítulo 13
da 1ª Carta aos Coríntios? Tentemos a
síntese sabendo que será sempre incompleta: A Caridade é o amor gratuito e
generoso, que só pensa no outro,
buscando fazer todos felizes, dando tudo o que pode e se dando totalmente na
doçura e na paciência.
Aos Coríntios, sedentos dos dons do saber, de inteligência, ciência, de
falar e interpretar línguas, de altas e compridas orações extáticas, o Apóstolo
explica com muita firmeza e certo humor que tudo é deveras muito bom e muito
belo. Mas tudo isso só tem valor se vem da Caridade e leva à Caridade. Mais
miudamente ele esclarece: o que conta mesmo é o serviço, é a edificação da
comunidade, em um contínuo e escondido movimento da divina Caridade. O
Apóstolo insiste, em contexto de crítica
às pretensões da “gnose”: “O
conhecimento (Gnosis) envaidece, a
caridade edifica” (1Cor 8,1-3; e ainda 10,23-24). E entre os carismas, há uma ordem
hierárquica: o que mais concorre para o serviço do próximo e para o trabalho
comunitário predomina e há de ser preferido
em nossa escolha e em nossas súplicas ao Espírito.
A prática da Renovação Carismática
vem nos ajudar aqui a bem compreender esses critérios de discernimento.
Em seu empenho de colar à palavra de Deus e de estar a serviço de seus irmãos e
irmãs, comunidades carismáticas ontem e
hoje praticam e exaltam de forma prioritária a oração de louvor. Ela é sem
dúvida a mais excelente. Brota do que há de mais profundo e próprio à Caridade,
que é antes de tudo: o amor que se compraz e se alegra em Deus e o contempla no
louvor e na ação de graças. Mas essa louvação, íntima e expansiva, visa no amor
ao Deus que é Amor, Dom, que se empenha e nos quer empenhados no serviço e na
busca da felicidade de nossos irmãos. O teste prático para quem se compraz no
gosto de louvar é a força com que se consagra ao serviço e à solidariedade
fraterna.
Essas grandes certezas evangélicas, proclamadas com clareza e vigor
pelo Apóstolo, inspiram e animam a teologia dos carismas, carinhosa e
minuciosamente elaborada pelo teólogo por excelência da Igreja, Santo Tomás de Aquino.
O estudo dos carismas (na Segunda
Parte da Suma Teológica, II-II,
171-178). não vem apresentado na
perspectiva do proveito e satisfação da pessoa, mas em plano comunitário.
Liga-se à reflexão sobre as formas de
vida ativa e contemplativa e à diversidade dos
ofícios e estados de vida. O que se visa diretamente é o bem comum, que
merece tanto mais o qualificativo de “divino” quanto se mira à obtenção dos próprios objetivos da Igreja.
Tomás distingue e ordena o conjunto dos carismas e define cada um deles olhando
sempre para o bem da comunidade, O aperfeiçoamento espiritual das pessoas só é
encarado indiretamente, enquanto decorre do melhor serviço prestado aos outros
mediante essas graças (“grátis dadas” ou carismas), que não são de si
santificantes.
O Santo Doutor estabelece a topologia e a hierarquia cuidadosa dos
carismas, a partir da profecia. Ela é estudada de maneira muito ampla,
sendo situada muito especialmente como a iluminação e a elevação da
inteligência dos mediadores da revelação ou dos transmissores escolhidos da
tradição, que perpetua a revelação na Igreja de maneira viva e atual. Tal é o
belo tratado que se estende da q. 171 à 178, coroando a ética das virtudes, que
vem a ser a II-II. [2]
Essa simples enumeração de questões evidencia o empenho do Teólogo de
elaborar de maneira rigorosa a doutrina do Apóstolo: os carismas visam
facilitar a realização da missão da Igreja, sobretudo o anúncio e o testemunho
do Evangelho. Estamos nos antípodas do entusiasmo ligado ao culto apoteótico
que os antigos prestavam aos reis, aos heróis, aos vencedores e que a mídia entretém e manipula hoje na
glorificação e na idolatria dos astros da beleza, dos esportes e diferentes
competições. Há aí uma espécie de meio “êxtase”, de limitada saída de si, pela
exaltação narcísea da imaginação e da sensibilidade. Mas semelhante projeção
emotiva não leva ao dom de si e ao serviço generoso do outro e da comunidade.
Esse tipo de entusiasmo egocêntrico se fortalece e propaga em contágios coletivos que alienam as massas em atitude de
divertimento e de servilismo. Teve sua expressão rutilante e sua idade de ouro
nos comícios que preparam o advento das ditaduras, especialmente fascista e
nazista.[3]
Mais ainda, ele pode encontrar
um campo privilegiado nas manifestações espetaculares da religião, que têm algo
de similar nos programas televisivos de auditório ou de culto dos ídolos
publicitários. O Apóstolo evocava que os fiéis, quando ainda pagãos, eram conduzidos como seres inertes e sem voz
a semelhantes cultos idolátricos (1Cor 12, 1-2). Os discípulos do Evangelho, ao
contrário, hão de ser guiados pelo Espírito, mediante a força interna do amor e
de um discernimento livre e responsável. O entusiasmo divino, aquecido pela fé,
pela esperança e pela caridade, não
impele o ser humano a evadir-se em busca de uma imagem idolátrica de si ou de outrem, mas o convida a sair do
egocentrismo e do narcisismo, no dom generoso e efetivo de si.
Essa mensagem apostólica, explicada pela teologia de Tomás, não exclui
os riscos de ambigüidade nos entusiasmos religiosos de ontem e de hoje. A
ambigüidade não se elimina por um simples apelo aos carismas do Espírito. Há um
único critério que nos vem da revelação evangélica e que a teologia tenta
sempre avivar e explicar graças ao confronto com a experiência do povo fiel. É
a caridade que há de inspirar e animar o projeto de uma saída constante de si e
de realização lúcida e corajosa de si, não em identificação com possíveis
ídolos imaginários, mas com o próprio Deus presente e reconhecido no outro, que
pelo amor se torna próximo e irmão. No coração de tudo, está o Espírito de Amor
e de Liberdade semeando amor e liberdade. Sem o Espírito, não há, para
nós, este porvir que não é um simples
acontecimento, por mais fabuloso que se possa imaginá-lo. É uma mudança
qualitativa. Mas o Espírito precisa de nós, pois vem para nos fazer existir por
nós mesmos e nos valorizar em nosso ser e agir. A Nova Era do Espírito será, portanto, o triunfo
da criação divina e da criatividade humana.
O Dom pessoal do
Espírito , eis a questão.
Estamos avançando na teologia do Espírito Santo. o Espírito é o Amor.
Ele o é, em sua perfeição divina, procedendo eternamente como o Amor do Pai e
do Filho. Tomás explica: o Filho é o Verbo ou a Palavra de Deus. É
eternamente gerado, à semelhança
(longínqua!) com nosso verbo mental, concebido intelectualmente; especialmente
se o encaramos como o conceito que cada um tem de si quando se
pensa a si mesmo. Por isso, o Filho é Imagem perfeita do Pai. Mas sendo Amor, o
Espírito Santo tem como nome próprio o
Dom: Dom total que é a expressão
concreta do Amor perfeito do Pai e do Filho.
Aquele que é o Dom Eterno no seio da Trindade vem até nós, enviado pelo
Pai e pelo Filho, qual Dom perfeito que nos conduza á intimidade dessa comunhão trinitária de amor. Na realização
dessa missão de ser o Dom, de se fazer aceitar amorosamente como o Dom que vem
do Pai e do Filho, o Espírito Santo nos cumula de dons.
O dom é uma espécie de pronome gracioso que exprime e torna presente o
amor. Os dons do Espírito não são propriamente coisas que nos enriquecem e
menos ainda nos engordam, impedindo-nos a marcha e ascensão nos caminhos do
amor. São dons que vêm como energias,
como formas, não de ter, mas de ser mais
e melhor. São como forças do Amor, que é o Dom perfeito. E
esses dons visam nos dispor a acolher o Dom que é o próprio Espírito de
Amor.
O Evangelho de João joga sempre com esse par de verbos: “Amou e deu”. O sujeito do amar é em
geral o Pai: “O Pai ama o Filho”, Jesus Cristo: “O Pai ama o mundo”, nossa maravilhosa e difícil humanidade. E aí
se introduz essa pequenina e extraordinária partícula de ligação: “Amou e deu”, “Ama e dá”. O amar é assim conectado ao dar, por um simples e, que indica a fonte, o motivo,
a razão do dom. “Amou e por isso, por essa única razão de amar, deu todos esses
bens”. Seguindo sem dúvida o mesmo tipo
de nexo semítico e a mesma inspiração evangélica, Paulo proclama: “Cristo me
amou e se deu por amor de mim”
(Gl 2,20). Está aí um dos pontos altos, senão o mais elevado pico, da revelação
do Novo Testamento.
O dar é a face visível do amar. O amor dá, se dá, porque é essa a sua
energia vital e incontida. Ele se mostra através do dom, e mediante o dom visa
criar um plano inclinado, para que o retorno do amor se faça mais vivo, mais
pronto, mais intenso.Há, sem dúvida,
certa ambivalência na prática de nossos dons ou presentes. Infelizmente,
mesmo nas relações com Deus, podemos falsear o jogo. E então, lá vem a
história de buscar e utilizar os dons divinos feito
iscas, ganchos e anzóis para malandras pescarias nos templos e fora deles. Não
se chega hoje às simonias qualificadas dos banqueiros da cristandade. Eles
investiam piedosamente comprando o usufruto de santuários para vender toneladas de certificados de indulgências. Mas a
prática mercantilista dos dons estende a
corrupção ao verdadeiro santuário de Deus, que é o coração feito para amar.
Os dons do Espírito nos introduzem no contínuo vaivém do Amor. O Dom
que Deus nos quer comunicar é Ele mesmo. “Pela graça somos chamados a fruir da
própria pessoa do Espírito Santo”, é o que diz Santo Tomás, escolhendo bem as
palavras. “Fruir” para ele é gozar a felicidade de amar uma pessoa, em oposição
a usar de uma coisa ou se servir de um objeto. O Dom pessoal do Espírito à
pessoa que entra nesse laço do Amor divino, é a Graça por excelência, é o pólo
de atração, é a finalidade e a razão de ser de todas as graças. É mesmo o
centro de todo o plano amoroso da providência de Deus no céu e na terra.
Eis o sentido divino
que dá rumo à nossa vida. Somos homens e mulheres, imagens vivas da Trindade
divina. E é no Espírito e pelo Espírito, que nos unimos e assemelhamos à
Comunhão Trinitária. Tal é a mensagem que recebemos da palavra e da comunidade
dos apóstolos de Cristo.
Concentramos nossa atenção ao que há deveras de mais
central, de mais atraente e talvez de mais difícil. É o ápice da revelação
divina. Aprendemos quem é Deus e quem somos nós no coração de Deus.
Dessa forma, por
seus carismas o Espírito nos quer
purificar e libertar de todo
egocentrismo e de todo narcisismo. Não nos detém na complacência dos fenômenos,
do que em nós se possa passar, mas nos transforma em tochas para os outros, em
gente toda voltada para o serviço e a atenção ao próximo e à comunidade. É o
objeto de sua insistência em 1 Cor 12,
7; 18-26; 14, 12, 26.
Temos. assim, de nos empenhar em um forte e suave esforço de
contemplar o que há de mais profundo, de
mais sublime na revelação e na teologia. Esse segredo amoroso de Deus não se
apresenta como um desafio à nossa razão. É
um convite à nossa inteligência, ao nosso coração, ao nosso gosto de
viver. No centro do Novo Pentecostes emerge a mensagem primordial da Igreja que se define como a
comunidade congregada em nome da Santíssima Trindade.
Ela proclama a Igreja
santa, reunindo pecadores, mas ensina que todos eles, homens e mulheres, são
chamados à santidade. Este ensino do capítulo V da Constituição Lumen gentium sobre a identidade do ser
cristão é o grande critério para apreciar todos os fenômenos e comportamentos
na Igreja. Só é autêntico o que santifica, o que é docilidade ao Espírito Santo
e santificador. O que constitui o verdadeiro carismático é essa consagração, essa devoção ao Espírito
levando à santidade, impelindo a irradiar santidade, a edificar a Igreja e a
promover uma civilização do amor.
Insistamos no
essencial, dando valor, mas valor
relativo aos meios que a ele nos conduzem. Somos projetos de Deus. Todo o nosso ser está programado para ir para Deus, para entrarmos em
comunhão com Deus que é Comunhão de
Amor, guiados e animados pelo Espírito que é o Amor.
BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL:
Limitamo-nos a indicar as obras em que desenvolvemos e documentamos os
temas aqui abordados.
- Tomás de Aquino e a Nova Era do
Espírito. Edições Loyola, São Paulo, 1998. O livro termina por uma
antologia dos grandes textos de Santo Tomás sobre o Espírito Santo.
- 2000. Em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo.Comunhão divina e solidariedade humana. Mesmo Editor, 2000.
A Trindade e cada Pessoa divina são estudadas sob o ângulo bíblico, teológico e
místico.
- Crer no amor universal, visão
histórica, social e ecumênica do “Creio em Deus Pai”. Loyola, São Paulo,
2001. Uma parte do livro é consagrada ao estudo do 3º. Artigo do Credo: Creio
no Espírito Santo.
- Evangelho e Diálogo
Inter-religioso, Loyola, São Paulo, 2003.
- Falar de Deus e com Deus,
Caminhos e descaminhos das religiões hoje, Loyola, São Paulo, 2004.
Nesses livros se encontram ampla informação bibliográfica. Damos grande
relevo às obras de Y. Congar.
[1]. O tema é tratado em uma síntese sugestiva por
Y.CONGAR, A Palavra e o Espírito (La
Parole et le Souffle), trad. de Luís BARAÚNA, São Paulo, Edições Loyola, 1989.
Para uma visão geral da doutrina desse grande teólogo do Espírito e da Igreja,
ver Luis Eustáquio dos Santos NOGUEIRA, O Espírito e o Verbo: As duas mãos do
Pai. A questão pneumatológica em Yves Marie-Joseph Congar. São Paulo, Paulinas,
1995.
[2] O conteúdo
das questões 171–174, sobre a profecia,
já fora minuciosamente e amplamente aprofundado na q, 12 do conjunto de
questões Sobre a Verdade. Sempre
nessa perspectiva comunitária, a q. 175
se empenha em elucidar a dimensão do conhecimento tão importante na profecia,
tratando do “rapto” ou do êxtase. Os aspectos de comunicação, que vêm prolongar
a profecia, são considerados na q. 176 Sobre o dom das línguas e na q. 177 Sobre o dom da palavra. Finalmente, na
q. 178, o dom dos milagres é apresentado e explicado
como a confirmação divina que dá força e credibilidade à palavra salvadora.
[3] O
fenômeno foi estudado com amplidão e cuidado por S. TCHAKOTINE, Le viol des masses par la propagande
politique, Gallimard, Paris, 1952. Obra verdadeiramente fundamental, apesar
de um recurso excessivamente sistemático à doutrina pavloviana dos reflexos
condicionados. Consagrei ao tema o
capítulo 4o. “Action sur l’homme: Dictatures totalitaires” do livro:
Information et propagande.
Responsabilités chretiennes, Ed. Du Cerf, Paris, 1968, pp.237-289.
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