Na hora de entrar diretamente no discernimento dos carismas é importante lembrar as palavras do Cardeal Carlos M. Martini, convidando para que se saiba superar uma situação típica do tempo de hoje, a de reduzir toda a experiência de fé segundo os próprios esquemas mentais e os critérios da cultura contemporânea, prescindindo de toda ação do Espírito Santo:
Ao mesmo tempo eu percebo grandes resistências à ação libertadora do Espírito Consolador. De um lado, a inclinação a absolutizar o próprio movimento ou a própria experiência espiritual, até o ponto de tornar coisa o carisma originário, fixando-o numa espécie de bagagem sobreposta, correndo o perigo de bloquear o processo de amadurecimento profundo e livre da pessoa.
De outro lado, a tendência a banalizar e a ironizar qualquer coisa que ultrapasse o já conhecido ou o já previsto; a pretensão de programar caminhos próprios ou de outrem, prescindindo de toda experiência vivida pelo Espírito, marginalizando-o entre as realidades supérfluas ou até alienantes. Isso acontece na vida de muitos batizados, quando a fé se enfraquece e a busca das coisas visíveis tira o lugar ao primado que deve ser dado às coisas invisíveis.
Quando na Igreja se faz necessário discernir os carismas de uma pessoa, surge espontânea a ideia de que o discernimento diga respeito somente ao confidente, que, por assim dizer, se torna objeto de exame por parte da Hierarquia ou das pessoas por ela destinadas para este fim.
Geralmente, porém, todo fato carismático tem como protagonista não somente o confidente, mas pelo menos estas outras pessoas: o padre espiritual; o grupo de apoio do confidentes; a Hierarquia da Igreja e a eventual comissão que ela instituir.
5.1. O primeiro discernimento é do confidente
Os dons carismáticos não exigem nenhuma predisposição por parte do sujeito que os manifesta e podem, de fato, ser dados a pessoas até em pecado mortal. Quem recebe os dons é simples instrumento da graça de Deus e nem por isso se torna mais santo. O que santifica é a graça do Espírito Santo que nos vem pela prática da caridade e do amor e pelos sacramentos.
Já vimos antes quais deveriam ser as características de um confidente. Aqui só acrescentamos que ele deve amar a verdade em si, mais do que os carismas e que cabe a ele, no íntimo de sua consciência, fazer um primeiro discernimento do dom, ficando sempre temeroso de poder enganar-se, perguntando-se se sobre a verdade do que está sentindo e experimentando.
Quando tiver interiormente a certeza de encontrar-se diante de algo que supera suas capacidades e seus conhecimentos ou de algo que apela para a comunidade eclesial, com humildade deverá, antes de manifestar-se publicamente, confrontar-se com um padre espiritual de sua confiança com o qual poderá abrir seu coração e averiguar o que está acontecendo.
5.2. O confidente se confronta com o padre espiritual
O padre espiritual deve ser um sacerdote de confiança do confidente, com o qual este possa se manifestar abertamente, sem receio de ser mal interpretado ou julgado. Sua tarefa principal consiste em apontar ao confidente qual deve ser a atitude a ser tomar diante de fenômenos extraordinários. Deve lembrar-lhe que muitas vezes as aparições, mensagens, locuções podem ser fruto de uma iniciativa pessoal do subconsciente e que podem multiplicar-se facilmente nas pessoas que se predispõem para isso. Mas que também podem ser uma riqueza da graça do Senhor que quer servir-se dele como seu instrumento.
5.3. A importância do grupo de apoio
O grupo de apoio que se forma em redor da figura do confidente, é geralmente composto por pessoas que, aos poucos, se fixam ao redor do confidente por motivos vários: algumas querem ajuda-lo como sinal de reconhecimento e de gratidão, porque por meio dele se converteram ou receberam algum benefício espiritual; outras são as que mais perto colaboram com ele, transcrevendo e publicando as mensagens ou os fatos carismáticos; outras ainda que aconselham e tomam iniciativas várias; outras, enfim, que promovem peregrinações ou romarias ao lugar dos acontecimentos, etc. São sempre pessoas animadas de boas intenções e de fato muitas vezes são o sustento humano-psicológico, afetivo-espiritual e até material do confidentes. Devem prestar muita atenção em saber estar perto do confidentes sem manipulá-lo ou sem deixar-se condicionar por ele.
Aqui está, talvez, a função mais difícil e delicada destas pessoas na hora do discernimento, que exige muito despojamento e muito equilíbrio. Quase sempre a imagem do confidente e a apresentação do fato carismático chega através deste grupo de apoio, que se não for interiormente livre, pode manipulá-lo segundo sua visão pessoal de fé, sua maneira de entender as coisas de Deus, sua experiência eclesial.
5.4. A Hierarquia chamada a discernir e a reter o que é bom
Outro protagonista do discernimento é a Hierarquia da Igreja, chamada a assumir oficialmente esta tarefa, que lhe cabe pela sua própria vocação e missão. É o bispo local que é chamado a avaliar os fatos e, conforme os casos, deverá criar uma comissão ou encarregar alguém para ajudá-lo neste discernimento.
Quais são os critérios de discernimento que a Hierarquia da Igreja usa ainda hoje para discernir fatos extraordinários? Seguindo a tradição, podemos indicar estes critérios de discernimento:
5.4.1. Ortodoxia da mensagem
Não podem vir de Deus mensagens ou locuções que contenham erros de fé ou de moral. O conteúdo das manifestações sobrenaturais deve sempre ser conforme à sã doutrina e aos ensinamentos do Magistério da Igreja.
5.4.2. Mensagem elevada
O conteúdo das mensagens, no seu conjunto em algum dos seus elementos, deve ser superior à capacidade intelectual e cultural de quem as recebe. Uma mensagem, então, que não diz nada a mais que todos conhecem, não pode ser considerada sobrenatural.
5.4.3. Mensagem clara
O que Deus comunica a uma pessoa é sempre claro, transparente, luminoso. O divino passando pelo humano reveste a forma e a cor de quem recebe estas comunicações; mas a essência e a forma mesma que Deus quis comunicar ficam iguais.
5.4.4. O que for predito, acontece
Se há profecias, antes ou depois devem realizar-se. Só assim provam a autenticidade de tais mensagens e a veracidade da experiência do confidente. Devem ser, porém, profecias que possam ser confirmadas e não genéricas, mesmo sabendo que o profeta não é aquele que somente revela coisas futuras que poderão acontecer.
5.4.5. Bondade dos frutos
A palavra que vem de Deus traz sempre frutos bons (Mt 7, 16-20). Atenção ao pai da mentira que sabe transfigurar-se em anjo de luz ( 2 Cor 11,14). Os bons frutos devem ser duradouros e nunca mesclados de frutos maus.
5.4.6. Finalidade do fato carismático
As mensagens ou outros fatos carismáticos sempre têm sua finalidade própria, que deve ser frisada e centralizada, não se perdendo em aspectos secundários (ex. perfumes, sinais no céu, no sol, etc.), que só têm o sentido de chamar a atenção das pessoas que devem se converter.
Se as mensagens comunicadas não levam a uma finalidade, a nenhum gesto e obra concretos, mas permanecem somente num processo de exaltação, por parte do confidente ou eleva a curiosidade das pessoas por sinais e prodígios sem crescimento espiritual algum, sem mudança de vida, não podem vir de Deus.
Quando Jesus realiza os seus milagres e prodígios não os fazia para exaltar-se, para aparecer, mas os realiza para uma finalidade. Podemos compreender isto, no episódio ocorrido quando visitava a região dos gerasenos e libertou o homem possuído com espírito imundo:
E, entrando ele no barco, rogava-lhe o que fora endemoninhado que o deixasse estar com ele. Jesus, porém, não lho permitiu, mas disse-lhe: Vai para tua casa, para os teus, e anuncia-lhes o quanto o Senhor te fez, e como teve misericórdia de ti. Ele se retirou, pois, e começou a publicar em Decápolis tudo quanto lhe fizera Jesus; e todos se admiravam. (Mc 5, 18-20)
Podemos agora entender que a libertação do endemoninhado não foi para outro motivo senão o de anunciar o amor e a misericórdia do Senhor e tudo o que ele faz por seu povo, por seus filhos e filhas.
Assim compreendemos que Deus não dá nenhum carisma extraordinário para a exaltação de ninguém, mas para a salvação e anúncio da boa nova, do seu projeto de amor.

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